Crítica
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Sinopse
Líder do grêmio estudantil, Saulo é alvo de xingamentos racistas dentro da sala de aula. Quando revida, é chamado à sala do diretor, mas se recusa a sofrer sozinho as consequências do ataque, visto que o agressor não é responsabilizado por sua fala. Inspirado em leituras sobre os Panteras Negras, o garoto decide permanecer na escola até que a justiça seja feita. Enquanto isso, expõe com seu telefone celular o descaso na estrutura do estabelecimento. Aos poucos, colegas, professores, diretores e mesmo políticos se envolvem no conflito que ganha destaque na mídia.
Crítica
Desde os primeiros minutos, instaura-se um cenário de tensão em Cabeça de Nêgo. Alunos negros chegam a uma escola enquanto se provocam, e são barrados pelo segurança, igualmente negro, devido ao atraso. Ao lado, o aluno Saulo (Lucas Limeira) cola cartazes convocando os colegas ao grêmio estudantil, mas se esconde quando um jovem aparece numa motocicleta. Na mesma cena são introduzidas uma arma, uma briga e uma fuga às pressas para dentro da escola. O diretor Déo Cardoso ergue um tabuleiro de tensões raciais, institucionais e políticas, apenas para acelerar os conflitos até a inevitável explosão. O filme funciona como uma panela de pressão, convidando os espectadores a compartilhar a luta dos alunos contra políticos e diretores opressores. Enquanto alguns projetos optam por um distanciamento reflexivo, tentando compreender os pontos de vista de diferentes partes envolvidas, o drama cearense constitui pura imersão.
A primeira metade, no entanto, ainda se mostra bastante jovial. A apresentação do cenário da escola estabelece os diferentes grupos de alunos, o descaso dos professores, a falsa diplomacia do diretor branco, as professoras simpáticas à causa estudantil, os conflitos existentes no mundo lá fora. O cineasta compõe planos um tanto acadêmicos, com duplas posicionadas no centro do enquadramento em scope, conversando pacificamente. Sente-se a falta de movimentação dos personagens, da dinâmica do ambiente escolar, e principalmente, de ruídos: a rua em frente à escola, essencial à trama, jamais possui carros, passantes, barulhos, e os próprios corredores da instituição se encontram convenientemente vazios. O discurso é transmitido com clareza excessiva: a linguagem adotada para introduzir o choque entre Saulo e a escola se encontra no cinema adolescente convencional, de estética, a princípio, inofensiva.
Ora, o filme melhora bastante conforme a narrativa avança. Aos poucos, Cabeça de Nêgo ousa sujar as mãos, partindo do idealismo à práxis política. Saulo negocia com as armas que possui: telefones celulares, manifestos, termos de compromisso a serem assinados pela diretoria. Ao invés de transformá-lo em mártir, a narrativa o converte em estrategista exemplar dentro da arte da luta política. A estrutura dramática se adequa muito bem ao tom crescente de fábula alegórica a respeito do germe da resistência juvenil. A cena-estopim na sala de aula, quando um xingamento é ignorado pelo professor, enquanto a resposta ao xingamento é punida, se revela muito bem filmada e editada, com ritmo e movimentação fluida, porém não frenética. Frases de encorajamento são estampadas na lousa atrás de Saulo, que se recusa a sair da escola enquanto a injustiça contra ele não for reparada, ao passo que imagens de grandes lideranças negras (Martin Luther King, Nelson Mandela, Angela Davis) são projetadas na parede.
Diversos filmes sobre revoltas juvenis trazem protagonistas politizados desde o princípio, limitando-se a colocar suas teorias em prática e inspirar os demais. No entanto, o projeto cearense toma a precaução de construir gradativamente a consciência social de Saulo, que lê textos sobre os Panteras Negras e se instrui conforme avança o enfrentamento à escola. O espectador é convidado a compreender, passo a passo, os motivos que levam uma pessoa a resistir, sejam eles de ordem teórico-cultural (as leituras, o contato do garoto com a poesia) ou prática, de sobrevivência (Saulo sofre ameaças de morte caso saia da escola). Aos poucos, a figura nuclear do protagonista encontra adeptos e detratores entre os colegas, os professores e mesmo em meio aos guardas da escola. Ao poucos, a teia de apoios entre os personagens coadjuvantes se torna fundamental para fomentar e legitimar a revolta de Saulo. Quando enfim irrompe uma revolução nas telas, a imagem treme a contento, fogos e tiros tomam conta da escola. Imagens de arquivo de manifestações estudantis reais diminuem a lacuna entre a ficção e o documental, tornando universais as reivindicações dos alunos.
Talvez este seja o principal mérito do catártico Cabeça de Nêgo: ele utiliza uma linguagem adolescente para expor um cenário sociopolítico complexo, ainda que representado por figuras arquetípicas (o político corrupto, o diretor racista, o marginal etc.). O cinema brasileiro recente trouxe três ou quatro filmes sobre as manifestações de estudantes, marcados em geral por certa ingenuidade ou idealismo excessivo. Em geral, introduziam-se muitas frases de efeito, histórias de amor entre alunos, mestres bondosos guiando o caminho dos jovens. Ora, aqui não há romances, as falas dos jovens soam bastante plausíveis em ritmo e gírias, os professores gentis jamais roubam o protagonismo do movimento, e a revolta torna-se muito mais grave do que as imagens habituais de confrontos com policiais. Mesmo a trajetória do vigia negro e a presença de um jovem negro como interlocutor dos poderosos trata de complexificar o cenário racial. Certo, ainda há deficiências, especialmente de captação e edição de som. No entanto, para um primeiro filme, Cardoso conquista o mérito raríssimo de propor um discurso potente entre o hermético e o popularesco, respeitando os jovens sem condescendência dentro de uma fábula de convite à luta.
Filme visto na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2020.
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