Crítica
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Sinopse
Após muitos anos como lavadora de carros, Célia recebe uma proposta para trabalhar em uma loja de produtos para animais. Em seu último dia na rua, precisa passar o ponto para a prima, ao mesmo tempo em que lida com a insegurança em relação ao novo desafio profissional.
Crítica
É interessante que a protagonista de Cabeça de Rua (2019) seja vista pela primeira vez à distância, através de um telefone celular. Através da típica imagem na vertical, algum morador dos apartamentos ao redor flagra a lavadora de carros andando na calçada. O espectador jamais descobre a identidade deste indivíduo, porém compreende que Célia constitui uma figura conhecida na região, observada com frequência, tendo estabelecido notável intimidade com os habitantes. A partir desta imagem inicial, o ponto de vista se cola à personagem que lava carros, canta músicas evangélicas e treina a prima para substitui-la, pois conquistou um emprego novo. Célia demonstra apego à função e ao relacionamento com os clientes habituais. Desde a apresentação, a diretora Angélica Lourenço faz questão de romper com o miserabilismo aplicado aos flanelinhas e limpadores, ou aos trabalhadores precarizados em geral. O curta-metragem evita a romantização deste emprego e as denúncias sociais explícitas - esta não é uma trajetória de sofrimento, nem de conquistas pessoais. Desconhecemos as heroínas fora do espaço público visto que a câmera nunca abandona a rua. No entanto, pela presença das primas juntas, supõe-se uma proximidade familiar e a existência de um núcleo inteiro de baixa renda. Por meio da metonímia, compreende-se tanto o universo dos lavadores quanto o mundo de classe média-alta dos edifícios.
Além disso, a obra efetua uma interessante troca em relação às expectativas de gênero, sem fazer alarde a esta configuração: contrariamente à presença majoritária de meninos efetuando a tarefa, o roteiro imagina duas garotas. A sexualidade delas permanece à margem, apesar dos traços masculinos da prima, assumidos com certo orgulho. Durante os letreiros finais, a trilha sonora dá vazão à ideia da homossexualidade, meramente aludida até então. “Lésbica futurista. Sapatona convicta”, aponta a música cômica, aparentemente entoada pela voz mecânica do Google. Ao longo de 15 minutos sucintos, a narrativa traça uma guinada ampla, partindo das canções evangélicas do letreiro de abertura, rumo ao hino lésbico no encerramento. Um símbolo típico da feminilidade, a boneca, se desconstrói a partir de uma cabeça suja e descolada do corpo, utilizada pela nova lavadora como bola de futebol. As camisas de time de futebol, o boné virado para trás e as bermudas folgadas ajudam a subverter um imaginário da feminilidade, sem partir para a caricatura do imaginário lésbico. Existe evidente respeito da cineasta e da diretora de arte por ambas as meninas, uma mais séria e introspectiva, e a outra, brincalhona. Juntas, proporcionam a variedade no jogo cênico necessária ao desenvolvimento do drama.
No papel principal, Cora Rufino constrói Célia com complexidade e desenvoltura. Há ternura do olhar da personagem, e também evidente familiaridade com aquele espaço, com as roupas e os olhares condescendentes de certos clientes. A dúvida da heroína quanto a aceitar um novo emprego se traduz numa cela de belos e lacônicos diálogos, quando a lavadora se mostra incapaz de formular o incômodo produzido pelo cargo numa loja de ração para animais. A maioria dos roteiros aproveitaria a oportunidade para verbalizar os sentimentos, porém o filme mineiro sabe preservar indicações sutis - tudo aquilo que pode ser pressentido pelo espectador dispensa justificativas no roteiro. Danielle Sendin propõe uma corporeidade mais masculina e bruta, ao limite da comicidade, acenando ao humor como forma de leveza e respiro. De qualquer modo, a dupla foge à representação homogênea da feminilidade e da rotina na rua - há maneiras diferentes de se portar neste contexto. Os coadjuvantes também se alternam entre a cortesia impessoal e a proximidade afetuosa com a lavadora. Lourenço reforça a impressão de um cenário dinâmico, composto por atitudes e temperamentos distintas. Assim, evita estereótipos normalmente associados à ilustração das classes desfavorecidas confrontadas à burguesia.
Cabeça de Rua se encerra em tom despretensioso, e simultaneamente empático com seu cenário e seus personagens. Através da fotografia desnaturada e naturalista, além de enquadramentos fixos (com poucas exceções, a exemplo da sacola de roupas buscada no porta-malas), ressalta a postura de igual para igual entre a diretora as mulheres retratadas. Felizmente, Célia e a prima ultrapassam a condição de objetos de estudo. Há perspectivas para o futuro de ambas, algo irônico, visto que a cena final alude à ideia de uma continuidade cíclica. Em outras palavras, enquanto a câmera permanece nas calçadas, o discurso se volta às possibilidades de empregos regulares em outros cantos da cidade - a imagem se prende ao presente, ao passo que o roteiro se projeta no futuro. Existe uma perspectiva otimista para as garotas, sem precisar desvalorizar a tarefa de lavadora de carros, nem descrever o serviço na loja como uma tábua de salvação. Angélica Lourenço apresenta uma obra capaz de reconhecer a seriedade das relações de classe, sem recorrer ao maniqueísmo - nenhum motorista se mostra particularmente perverso com as heroínas. O drama maduro remete a uma crônica literária, do tipo que prefere expandir os sentidos da trama ao invés de conclui-la de maneira tradicional. O formato serve muito bem à potência narrativa do curta-metragem, enquanto revela uma diretora de notável talento.
Filme visto online no VI Cine Jardim: Festival Latino-Americano de Cinema de Belo Jardim, em agosto de 2021.
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