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Crítica


7

Leitores


10 votos 8.8

Onde Assistir

Sinopse

Um homem assombrado por aqueles que ama. Canibalismo, religiosidade fanática e obsessão caracterizam este filme dividido em três partes.

Crítica

Cabrito (2019) é um filme chocante. No entanto, a surpresa não se encontra no sangue, nas tripas ou monstros, e sim na estética. Nada nos provoca mais do que a maneira como são filmados os elementos do terror. A primeira imagem remete a uma fotografia em still: a planície interiorana de uma cidade brasileira não identificada. A delicada paisagem sugere paz, naturalidade e imobilidade (o oposto do imaginário de horror), apesar de o som indicar que chove – ainda que a chuva não imprima neste primeiro enquadramento. Na cena seguinte, a objetiva da câmera traz o efeito de molhado, revelando ao espectador o dispositivo da filmagem. Os rituais de um enterro são acompanhados por um scope elegante, com efeitos sonoros realistas, praticamente sem diálogos. O projeto desperta atenção pelo equilíbrio de procedimentos: o ótimo refinamento das imagens serve a retratar canibalismo, necrofilia e assassinatos. Seria fácil tornar aquelas cenas nojentas, mas a direção de fotografia filma o terror como drama, o que não equivale a negar o gênero, apenas potencializá-lo pelo efeito de estranhamento.

A direção de fotografia e o trabalho de som representam os melhores aspectos do filme. O casebre onde se passa a parte considerável da trama possui uma iluminação ao mesmo tempo preciosista e verossímil: cada personagem ou objeto está muito bem valorizado pela imagem, mas não a ponto de se tornar um cenário teatral – ou seja, sem chamar atenção ao artifício. Muitos filmes contemporâneos apostam na captação digital excessivamente nítida, mas este projeto compreende a necessidade da textura para sugerir mistério, para valorizar as cores ao invés da forma, e para afastar a trama dos nossos tempos de smartphones e filmagens caseiras. Em paralelo, o som evita os jump scares – até porque não há sustos fáceis ao longo da trama –, enquanto reforça de maneira fantasista os efeitos mais importantes: o sangue jorrando de uma ferida, a faca penetrando as entranhas, os ruídos dos porcos agitados. Há mesmo uma sensualidade perturbadora quando o filho esfaqueia múltiplas vezes o corpo do pai, freneticamente, com alto som sugerindo prazer no ato e ferocidade nas estocadas. O slasher, gênero tão comumente associado às vítimas femininas do prazer masculino, encontra desta vez nos homens adultos o alvo principal.

De fato, as três histórias que compõem o filme são unidas pela semelhança dos espaços e pela ideia de homens oprimidos pela sociedade. Maltratados pelos pais tirânicos, desprezados pela mãe religiosa, rejeitados pelos irmãos e ignorados pelas mulheres, estes homens infantilizados recorrem sistematicamente à violência. O procedimento poderia se tornar eticamente questionável, caso demonstrasse condescendência com o ato, ou seja, se perdoasse o homem devido aos abusos que sofreu. No entanto, o roteiro permite afastar os crimes da relação realista e de causa e consequência: no primeiro segmento, o mais ambicioso de todos, a tortura está diretamente associada à ditadura militar dos anos 1960 – a corrupção do governo encorajaria a prática da violência em família. Ironicamente, ou não, o regime autodenominado defensor da família seria o mais propenso a estimular atos de agressão. Nos demais casos, a loucura ou símbolos próximos da atmosfera do pesadelo (a belíssima sequência do homem de camiseta branca perdido na paisagem escura) nos afastam do realismo e da justificativa lógica aos atos. Azevedo jamais adere à violência enquanto prazer retórico: a maioria dos crimes aconteceu em momento posterior à cena, ou então é sugerido em off, pelo som e enquadramento.

Esta construção resultaria ainda mais potente caso o roteiro tomasse o tempo de investir na psicologia dos personagens. Cada segmento se inicia num momento próximo da explosão, quando os familiares se detestam e disparam frases violentíssimas uns contra os outros. Ora, o espectador jamais compreende como os laços se deterioraram a esse ponto, algo que seria fundamental para se identificar com os protagonistas, além de evitar as frases de efeitos caricaturais por parte dos pais. Em paralelo, o caráter político se atenua bastante: teria sido mais proveitoso explorar a leitura crítica por meio de outros símbolos, ao longo do filme inteiro, ao invés de abandonar por completo a analogia com a ditadura e o extremismo religioso. Além disso, a direção de arte e a maquiagem vão além da verossimilhança na caracterização: nada mais óbvio do que um vilão repleto de cicatrizes no rosto, ou quartos com paredes incrivelmente sujas. Felizmente, a fotografia e o som atenuam o que poderia se traduzir em exagero e clichê. O terror ainda busca no cenário campestre e noturno seu imaginário perfeito de terror, porém ao menos prioriza as interações humanas aos recursos sobrenaturais. Quando o cinema de terror vai enfim levar as mortes e o grotesco ao mundo empresarial das capitais, à burguesia, ao Palácio do Planalto?

Ressalvas à parte, Cabrito impressiona sempre que transparece o cuidado no tratamento do tempo, a apreciação estética dos espaços, e a crença de que o público seja capaz de imergir na trama sem o esforço de chocá-lo com truques fáceis. O início do terceiro segmento – uma alternância impecável de planos silenciosos num bar – constrói tão bem a tensão que atesta a qualidade desta produção. Qualquer diretor de tendência mais “espetacular” ficaria tão feliz com a presença de um cadáver deteriorado que o exploraria de perto, em vários ângulos, com música forte. No entanto, Azevedo prefere uma imagem simples, até mesmo romântica e, por isso mesmo, perturbadora. A montagem ousa por meio da inserção de flashes coloridos rompendo com a linearidade, enquanto imagens de um segmento invadem as demais sem funcionalidade narrativa, porém com grande impacto estético. Enquanto tantos projetos episódios se preocupam em reunir as histórias por meio do roteiro, este filme vai além ao reuni-los pelo tom e pelo estilo. O material humano ainda é excessivamente simplificado: caso fugisse ao maniqueísmo evidente, o resultado alçaria voos ainda maiores. De qualquer maneira, é impressionante que o terror gore possa se tornar tão bonito e agradável aos olhos.

Filme visto online no 16º Fantaspoa - Festival de Cinema Fantástico de Porto Alegre, em julho de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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CríticoNota
Bruno Carmelo
7
Chico Fireman
5
MÉDIA
6

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