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Sinopse

A maquiadora Clara fica inconsolável quando encontra a namorada Blanca em coma numa banheira, por motivos inexplicáveis. Logo, os médicos atestam que a paciente está grávida. Chocada com a traição, Clara inicia uma investigação por conta própria, entre a realidade e a fantasia.

Crítica

Este drama possui um ponto de partida fascinante: sofrendo com a hospitalização da namorada, em coma por motivos misteriosos, Clara descobre que a mulher de sua vida está grávida. Em outras palavras, ela foi traída. Sentimentos controversos tomam conta da protagonista: medo pela possível perda de Blanca, raiva devido à infidelidade, e arrependimento consigo própria pelos pensamentos negativos relacionados a uma pessoa próxima da morte. O surgimento de um bebê, que poderia ser uma notícia linda, afeta a heroína como uma declaração de ruptura do relacionamento, embora Clara não possa brigar, exigir respostas, nem fazer as pazes. Cadáver Exquisito (2021) se insere neste ponto de suspensão, espécie de parêntese interrompendo as trajetórias da maquiadora e da bióloga. Os flashbacks tradicionais permitem ao espectador descobrir a vida do casal antes do acidente, em extensas sequências de intimidade. Raras produções de temática LGBTQIA+ se dedicam à representação do sexo de maneira tão naturalista, desprovida do choque, da vergonha ou da idealização dos corpos. O albinismo de Blanca - característica inerente à atriz Blanca Nieves Villalba - tampouco interessa à diretora Lucía Vassallo. Ao invés de um retrato de figuras excepcionais, a cineasta as enxerga pelo pela perspectiva universal de um amor interrompido.

Enquanto imersão na psicologia das protagonistas, o longa-metragem efetua um excelente trabalho. As hesitações, dúvidas e oscilações de humor marcam o percurso de Clara, construída pela excepcional Sofía Clara Castiglione. A atriz apresenta tamanha naturalidade com o corpo, os diálogos e as interações (com homens e mulheres) que torna plausível tanto o tormento interno quanto a placidez externa da namorada traída. O cenário do curso livre de expressão corporal, entre teatralidade e dança contemporânea, demonstra uma intérprete confortável com os movimentos e situações mais improváveis. Mesmo quando Clara veste uma peruca, na tentativa simbólica de acessar a namorada hospitalizada, o gesto adquire o caráter banal de vestir um camiseta para sair de casa. É interessante pensar que a maioria das atrizes aproveitaria estas oportunidades para enveredar pelo grotesco, pelo cinema ostensivamente “de gênero”. Ora, Castiglione deixa que os acontecimentos produzam estranheza por conta própria - ela privilegia a composição clássica do drama de personagens. De fato, os elementos sinistros (uma droga experimental, a evolução da gravidez no corpo paralisado, a relação familiar) dizem respeito à outra, à musa impassível. Clara vive uma tragédia; Blanca vive um suspense.

Precisamente, no que diz respeito ao fator suspense, a obra se fragiliza. A cineasta enfrenta dificuldade em aprofundar o dilema da dupla: o quadro clínico da paciente permanece idêntico, e nenhum exame permite chegar a novas conclusões. A heroína dedica dia e noite a remoer internamente o caso, deixando de frequentar o trabalho, de ter contato com a família, ou seja, de seguir uma vida autônoma. A perda de si própria poderia ser levada às últimas consequências (a exemplo do excelente A Outra, 2008, de Patrick-Mario Bernard e Pierre Trividic), entretanto a cineasta argentina recusa as teses da loucura, da histeria, da monstruosidade. O respeito sóbrio pelas personagens principais impede qualquer forma de catarse, seja pelo grito, choro ou gozo. A narrativa não consegue produzir tensão a partir de elementos voluntariamente estanques: os objetos encontrados na casa de Blanca, o cenário da escola e o encontro com o possível pai do bebê se revelam anticlimáticos, incapazes de oferecer rumos distintos, ou ambientações diferentes. Vassallo opta por um thriller diurno e contemplativo, onde os demônios permanecem internos, sem a oportunidade de exteriorização. 

Até por isso, a conclusão se interrompe abruptamente (não confundir com o final aberto): o conflito se suspende antes de oferecer chaves de leitura ao espectador. A diretora demonstra maior interesse em situar suas mulheres dentro do labirinto do que em tirá-las de lá. Em paralelo, a elaboração estética revela cuidado insuficiente: apesar da bela cena do corpo branco numa banheira leitosa, e das cores azuladas com a transformação de Clara-Blanca, outras sequências soam inverossímeis - caso do laboratório desenvolvendo pesquisas complexas com apenas dois cientistas; da iluminação insuficiente para a apresentação coreografada, e da maquiagem pouco verossímil de sangue. Os enquadramentos se contentam em acompanhar os corpos, de maneira tão eficaz quanto impessoal - a turbulência da heroína jamais contamina os enquadramentos, a profundidade de campo, a luz, a duração dos planos. A casa de Blanca, cenário fundamental à trama, sofre com a captação inexpressiva, em ângulos repetidos que pouco acrescentam às cenas anteriores. A produção parece limitada por questões de orçamento, refletidas nos cenários, figurinos e equipamentos. Para um projeto tão dependente da atmosfera e das sugestões, a construção imagética careceria de refinamento.

De todo modo, Cadáver Exquisito resulta numa experiência bem-sucedida enquanto sugestão de um estado emocional. Poucas iniciativas fantásticas dedicam tamanho esforço para construir duas protagonistas contraditórias e multifacetadas, como convém às obras naturalistas. Além disso, é louvável encontrar uma história de amor entre duas mulheres onde o lesbianismo e a bissexualidade não constituam um motor de conflito - o preconceito, a dor da descoberta e da autoaceitação passam longe das ações. A placidez da mise en scène funciona bem para a ética da representação de personagens, porém prejudica o resultado quando impede voos estéticos mais ambiciosos. Ao menos, Clara e Blanca, duas figuras de cor clara, opostas porém intercambiáveis a certa altura, contribuem à impressão do realismo fantástico, de uma cautionary tale a respeito dos perigos de seguir seus desejos de maneira inconsequente. A lição de moral se desenharia com clareza caso a narrativa prosseguisse por dez minutos suplementares, no entanto este parece ser o fator que Vassallo procura evitar: a redução da obra a uma leitura única. Ela prefere sustentar o mistério das amantes na cabeça do espectador após a sessão a garantir às protagonistas um desfecho digno dos grandes thrillers psicológicos.

Filme visto online no 12º Cinefantasy, em setembro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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