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Sinopse
Mathieu é um talentoso agente de segurança de voos, responsável por analisar acidentes e desvendar os segredos de tragédias registradas nas caixas pretas de aviões. Quando um voo Dubai-Paris cai, deixando mais de 300 mortos, ele é envolvido na investigação, mas descobre indícios apontando a caminhos contraditórios. Pressionado para chegar a uma conclusão, Mathieu suspeita que seus chefes não estejam realmente interessados na verdade por trás da tragédia. Ele decide iniciar uma análise por conta própria, levantando todas as hipóteses possíveis, inclusive as mais absurdas. O jovem fica consumido pelo caso que destrói sua vida pessoal e seu casamento. Ele estaria ficando paranoico, ou existe algum fundamento por trás das pistas cada vez mais sombrias?
Crítica
Este suspense parte da premissa de que a verdade é uma questão de percepção, ao invés de fatos. Ou seja, não existe apenas uma leitura do real, e sim aquela interpretada por cada pessoa. Quando o voo Dubai-Paris sofre uma queda nas montanhas, provocando a morte de cerca de 300 passageiros, a caixa preta é recuperada. O objeto se encontra em boas condições, tendo os dados de voo e os registros sonoros prontamente analisados por especialistas. Neste momento onde a maioria das tramas se encerraria (bastaria escutar as gravações para descobrir o que ocorreu), o filme francês se inicia. Afinal, os sons apontam a caminhos contraditórios: às vezes sugerem um passageiro enlouquecido entrando na cabine dos pilotos, às vezes se interrompem sem motivo, e em outros instantes, contêm ruídos inesperados. Mathieu Vasseur (Pierre Niney), perito em segurança aérea, se dedica ao caso com afinco, embora sinta que, quanto mais escuta as gravações, menos compreende o que realmente se passou na aeronave. No passado, o jovem cometeu um erro em um de seus relatórios, por supor um problema que não existia. Por isso, precisa recuperar a confiança de seus superiores. Para ele, este trabalho representa um teste de suas capacidades e de seu valor.
Caixa Preta (2021) impressiona pela qualidade deste herói ambíguo. É fácil se identificar com Mathieu, que opera no registro de “um contra todos”: ele deseja revisar inúmeras informações, apesar de os colegas darem o caso por encerrado. Acompanhamos a dedicação do especialista dia e noite, obsessivamente, em busca de algum elemento visual ou sonoro capaz de indicar uma falha nas leituras. “Não interprete demais”, pede o chefe e pai postiço Philippe Rénier (André Dussolier), ciente tanto dos talentos quanto dos excessos do rapaz. Enquanto isso, o hábil roteiro começa a oferecer pistas capazes de borrar a fronteira entre realidade e paranoia. O profissional aponta caminhos e teses facilmente refutadas. Ele começa a perder a cabeça na busca pela verdade, enquanto o espectador o acompanha num universo de conspirações que parecem ora verossímeis, ora absurdas. Mathieu se transforma numa figura fascinante por sua proximidade com o papel de um diretor de cinema, ou pelo menos, de um contador de histórias: é ele quem cria as versões, determina os mocinhos e bandidos em cada caso, os conflitos e desfechos de sua ficção. Com materiais visuais e sonoros em mãos, faz idas e vindas no tempo e associa captações diferentes como um montador dedicado. O funcionário efetua seu próprio cinema que, a exemplo das obras naturalistas, atribui o aspecto de verossimilhança à ficção. No fundo, parece que nada daquilo realmente existiu.
O diretor Yann Gozlan, especialista de filmes de ação cheios de perseguições, tiros e lutas, oferece neste caso um longa-metragem incrivelmente tenso a partir de um único conflito central, e de suas ramificações. O dilema da tragédia se desenvolve sem parar: quando pensamos que se chegou à conclusão definitiva, uma nova versão coloca em dúvida o relatório anterior e aponta a rumos distintos. Este roteiro embarca numa jornada vertiginosa, ágil em sua construção, e atenta ao poder de sugestão dos detalhes e dos subentendidos. Desse modo, multiplicam-se os pequenos planos de detalhe de folhas sob a mesa, ruídos quase imperceptíveis na gravação, arquivos escondidos, fitas que talvez tenham mudado de lugar. Somos levados a suspeitar de tudo e de todos, incluindo o círculo próximo do analista. O diretor de fotografia Pierre Gottereau aposta em imagens fixas e elegantes, valorizando o caráter oficial e solene dos grandes galpões e escritórios, que se confrontam ao teor visceral e extraoficial da investigação. Pela estética, o mundo segue em ordem, com enquadramentos fixos e acionários celebrando o lançamento de novos produtos aeronáuticos, em cenas simétricas, ocupadas por personagens de cabelos perfeitos e roupas impecáveis. Esta aparência de normalidade empresarial torna o delírio de Mathieu ainda mais profundo: ele se converte no único a abraçar com furor aquilo que, para os outros, consiste em mera casualidade.
Além disso, existe um caráter particularmente instigante num thriller psicológico cujos principais motores de conflito se encontram nos sons. O dinamarquês Culpa (2018) levava o procedimento às últimas consequências, permitindo que integralidade da ação se limitasse a uma inquietante conversa ao telefone. Aqui, em contrapartida, também se abraça a ação concreta, especialmente rumo ao desfecho. Mesmo assim, o filme francês tenta prolongar a sensação labiríntica ao espectador, ao reproduzir inúmeras vezes o conteúdo da caixa preta, cada vez por um fragmento diferente, permitindo que o público lance suas próprias hipóteses sobre a tragédia. Aquele primeiro ruído não parece passos? Por que os pilotos decidiram tirar os fones de ouvido? Por que a minutagem da colisão difere do fim do registro sonoro? Pierre Niney encarna com vigor a figura deste nerd desacreditado e antissocial, com traços de genialidade próximos da excentricidade. Trata-se de uma figura estereotipada, em linhas gerais, ainda que se humanize ao longo do processo, ao admitir a frustração com as leituras erradas e com o fato de nunca ter sido aceito como piloto. Sempre existe a possibilidade de que o intérprete apenas projete sobre os indícios aquilo que deseja ver, numa forma de lidar com o recalque. Lou de Lâage encarna a esposa gentil, porém de moral duvidosa, enquanto os colegas de profissão encarnam papéis tênues a gentileza e a vilania. É visível o prazer do elenco em fornecer performances dúbias, brincando com as pausas no texto, o teor dos diálogos e os olhares de preocupação ou ameaça.
É certo que o projeto se rende a alguns lugares-comuns e reviravoltas improváveis no intuito de preservar a tensão até o final. Gozlan reflete sua tendência hollywoodiana sobretudo no terço final, quando ameaça converter seu protagonista num Jason Bourne capaz de fugir dos inimigos um segundo antes da captura, ou de buscar pistas que ninguém jamais descobriria. A câmera frontal no carro de Pollock (Olivier Rabourdin), o vídeo secreto apresentado durante uma conferência e o download efetuado às pressas, conforme os adversários se aproximam, correspondem a recursos de roteiro utilizados com frequência pela indústria - sinal de que o apelo à imaginação, através do som, se sustenta apenas até certo ponto. Ressalvas à parte, o projeto surpreende pela eficiência com que desenvolve sua trama e lança um olhar de desconfiança sobre uma extensa galeria de personagens ao redor de Mathieu, o único certamente inocente nesta trama. Desde o plano-sequência inicial, passeando pelos pilotos na cabine rumo à caixa preta no fundo da aeronave, até um acidente de carro, o projeto proporciona sequências de impacto e gravidade que nunca se interrompem, nem se repetem. Gozlan domina as sensações que busca provocar no espectador, ainda que, para isso, apele a algumas facilidades. O resultado é um cinema-pipoca de qualidade excepcional, como tantos suspenses norte-americanos falham em produzir.
Filme visto no 12º Festival Varilux de Cinema Francês, em novembro de 2021.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Bruno Carmelo | 8 |
Robledo Milani | 6 |
Ailton Monteiro | 7 |
MÉDIA | 7 |
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