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Crítica


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Sinopse

Após sobreviver a um trágico acidente de carro, um sujeito luta para recobrar suas memórias. Desesperado, ele aceita se submeter a uma técnica nova que promete mergulhos profundos no inconsciente.

Crítica

Há uma construção gradual do horror em Caixa Preta. Para começo de conversa, o pavor diante de uma ignorância fundamental. É amedrontadora a forma como o cineasta Emmanuel Osei-Kuffour a apresenta desarticulando aos poucos o elo entre pai e filha. Nolan (Mamoudou Athie) sobreviveu ao acidente automobilístico que tirou a vida de sua esposa. O cotidiano com o fruto do casamento interrompido é dificultado pela amnésia. A pequena Ava (Amanda Christine) se esforça para ajudar diariamente o homem que não se lembra da disposição das coisas, do caminho rumo à escola e tampouco das circunstâncias que o levaram a propor o matrimônio no passado. Diante da necessidade de oferecer atenção e cuidados à menina, o protagonista é frequentemente solapado pelo breu da memória, situação que o angustia. Disposto a mudar isso, se submete a uma técnica desconhecida e pretensamente revolucionária, segundo a qual, em estado de hipnose, transitará por projeções fidedignas – tipo uma realidade virtual – do caldo de suas recordações.

Os mergulhos na própria mente possibilitam o segundo estágio do horror. Nolan acessa passagens importantes, mas os rostos das pessoas são borrados, o que cria uma imagem potencialmente aflitiva. Além disso, uma entidade bizarra o interrompe sempre que iminentes as revelações de algo importante. Uma espécie de guardião do inconsciente, o monstro deformado, emitente de um barulho enervante em seus deslocamentos grotescos – praticamente andando ao contrário, de tal modo que aparentemente suas vértebras vão reencontrando encaixes ideais –, veda o acesso à verdade. Ao passo em que fomenta o medo da criatura encarregada de revestir previamente as sessões com um caráter bastante apreensivo, o realizador sinaliza o quanto o cotidiano do fotógrafo que não consegue mais emprego está sendo prejudicado por seu estado de desmemoria. Caixa Preta lança mão de alguns expedientes que acabam não acrescentando tanto (vide a professora desconfiada), mas geralmente consegue manter em alta a nossa expectativa quanto ao que virá.

A revelação do extraordinário gera a terceira camada de terror de Caixa Preta. As reflexões passam a ser de outras ordens, incorporando (ainda que não com a intensidade devida) conflitos éticos e a exploração de técnicas paradigmáticas que podem criar backups de consciência. Privilegiando a reconfiguração do drama vivido pelo protagonista, Emmanuel Osei-Kuffour passa meio batido pela discussão existencial que poderia emanar de alguns desdobramentos (aqui suprimidos pelo bem de quem não assistiu ao filme). Sim, pois a surpresa é importante para o espectador vivenciar o crescendo, o horror ganhando novos elementos à medida que a trama se desenvolve rumo à verdade bem escondida. A produção ganha pontos igualmente pelo jeito como utiliza poucos recursos no desenho de uma jornada complexa que busca subsídios na ficção científica e nas concepções psicológicas para tornar robusto esse insuspeito thriller. De quebra, há o vilão que emerge de onde menos se esperava e as vítimas acumuladas ao largo de uma decisão arbitrária de alguém desesperado.

No que diz respeito às interpretações, os destaques ficam por conta de Mamoudou Athie e Amanda Christine. Ele transita entre a confusão, a euforia das pequenas conquistas e a agressividade competente a Nolan após as reviravoltas. Já ela tem uma desenvoltura notável como a criança revestida de responsabilidade para conferir alicerces ao pai desmemoriado que, assim, depende completamente da menor para começar a recolocar a rotina nos eixos. Tratando os coadjuvantes como meros suportes, o realizador se foca na torturante jornada do protagonista rumo ao autoconhecimento literal, em meio a isso sinalizando a ciência como produto do conhecimento, capaz de verdadeiros milagres, mas perigosa se manipulada por mãos erradas. A doutora Lilian (Phylicia Rashad) atende a uma lógica arquetípica, descendendo diretamente de outros homens e mulheres da ficção que também expandiram a tecnologia com suas genialidades distorcidas por uma demanda emocional capaz de lhes turvar o julgamento. Um filme pequeno, mas de valor, pois sabe dispor bem as suas boas ideias.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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