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Sinopse

Nos Estados Unidos dos anos 1960, Joy é uma advogada que abandonou a prática profissional para cuidar do marido e das crianças. Ela está feliz com a nova gravidez, até descobrir um problema de saúde que pode causar sua morte caso siga com a gestação. Joy tenta, sem sucesso, uma autorização para abortar. Na busca por soluções, descobre o mundo do aborto ilegal, e através dele, conhece o sofrimento de centenas de mulheres em situações semelhantes. Aos poucos, ela se une ao movimento pelo direito de escolha da mulher.

Crítica

Call Jane (2022) apresenta seu tema principal aos poucos, com receio de chocar. Por isso, o ponto de vista pertence a Joy (Elizabeth Banks), mulher conservadora e burguesa. Através dela, o espectador de qualquer vertente ideológica pode se identificar com a figura alienada se sensibilizando, gradualmente, ao tema da liberdade de escolha. A própria decisão de encerrar a gravidez parte de uma razão mais palatável aos olhos tradicionalistas: Joy sofre de um problema cardíaco que provavelmente causará sua morte caso siga com a gestação — a opção deriva, portanto, do instinto de sobrevivência. Ainda assim, ela será definida na cena inicial como um corpo esguio, loiro, de penteado impecável e roupas finas. O plano-sequência de abertura acompanha a nuca da heroína, saindo de um jantar enfadonho com pessoas ricas até encontrar, nas ruas da cidade, um protesto movido pelas pautas de maio de 1968. De certo modo, este também será o percurso efetuado pela heroína: a saída do “conforto” do lar, compreendido enquanto conformismo com as regras patriarcais, ao enfrentamento dos dilemas sociais. Em seu primeiro longa-metragem para o cinema, a diretora Phyllis Nagy (mais conhecida pelo roteiro de Carol, 2015) abandona o microcosmo da vida íntima para adentrar a esfera comunitária. Para ela, o direito ao aborto se traduz numa questão de saúde pública, ao invés de julgamento moral.

Elizabeth Banks compõe esta figura com um misto de perplexidade e obstinação. A atriz especializada em comédias e dotada de excelente timing cômico diminui o volume da voz e adota uma expressão apagada — tamanho cansaço no olhar prepara o terreno para a transformação que virá. A revolução interna de Joy será tão importante quanto aquela, externa, dos costumes e leis nos Estados Unidos. A heroína descobre a importância destes temas junto ao espectador, numa inteligente estratégia de comunicação por parte da criadora. Longe de impor estes temas como uma verdade absoluta, antagonizando o público avesso ao aborto, fornece argumentos plausíveis por se colocar do lado da mulher. As opiniões do marido, da filha, da igreja ou da polícia são ignorados tanto pela personagem central quanto pelo filme: aqui, importa apenas a decisão tomada pela heroína a respeito de seu corpo e seu futuro profissional. A incorporação ao movimento pró-escolha, ajudando novas jovens a encerrarem a gravidez indesejada, decorre menos de despertar político súbito do que do senso de pertencimento — Joy se sente bem na associação, convivendo com membros de origens tão diferentes da sua. Há uma ideia muito bela por trás da proposta que, ao passar pelo procedimento ilegal e assustador, a heroína se descobre mulher, se empodera e passa a conhecer o próprio corpo. O trauma permite um processo de autoconhecimento — quanto mais estuda e pesquisa, mais empática se torna. Nada mau para os nossos tempos de desinformação e movimentos anticiência.

É uma pena que o discurso tão arrojado se envolva numa embalagem acadêmica. Falta à diretora a ousadia de suas ativistas fictícias, o desejo de romper barreiras, inclusive na estética e na linguagem. A direção de fotografia de Greta Zozula aparenta estar sempre próxima demais dos rostos, enquadrando-os no centro da imagem e impedindo a percepção do mundo ao redor. Tamanha claustrofobia se justificaria pela perspectiva da protagonista, presa inicialmente ao ambiente doméstico. Em contrapartida, conforme o filme se abre, o olhar também precisaria adquirir amplitude. Cenas simples, a exemplo da conversa com a vizinha Lana (Kate Mara) na varanda ou a primeira reunião com as militantes revela a dificuldade de posicionar a câmera nos espaços estreitos e encontrar enquadramentos propícios. O filme deixa de valorizar os espaços, a sensação de vazio decorrente do ambiente frio da clínica, ou de artificialidade nos lares. A montagem imprime um ritmo agradável, consensual, sem acelerar nem fragmentar o ponto de vista. O único olhar permitido será o de Joy, em torno da qual os personagens possuem poucos conflitos próprios. É difícil acreditar que o marido Will (Chris Messina) esteja realmente advogando em algum caso complexo, que a filha Charlotte (Grace Edwards) se dedique aos estudos, e que Lana tenha qualquer outra ocupação além de sentir a falta do marido morto, dia a noite. Nem mesmo Virginia (Sigourney Weaver), líder do movimento, adquire contradições políticas ou uma afirmação orgulhosa de sua homossexualidade — o tema é retirado de cena com discrição excessiva.

Por fim, Call Jane constitui uma obra competente, espécie de “filme sobre aborto para toda a família”. Banks e Weaver garantem a cota de humor necessária para atenuar o peso do tema, sobretudo diante de reviravoltas inverossímeis como a abrupta formação médica da protagonista. Nagy se diverte com nosso desconforto diante do tema tabu, ao invés de simplificá-lo para atrair a simpatia alheia. Por isso, as cenas de procedimentos feitos por um médico ganancioso beiram o cinema de horror, enquanto a mesma ação, efetuada por voluntárias, adquire um teor de comunhão. A diretora transforma o aborto em algo além de um direito, mas também um gesto de carinho das mulheres umas com as outras. O traquejo da heroína para acalmar adolescentes desesperadas, empobrecidas e estupradas confere a humanidade de que o filme precisa. Ainda que banhado numa textura da película antiga, e sustentando a polidez apropriada às produções comerciais dos anos 1960, a produção transmite um pensamento dos anos 2020, em especial na época quando as novas cortes americanas buscam revogar as conquistas de Roe vs. Wade. Talvez o discurso seja expositivo e utópico demais (vide a cena final, de um otimismo digno dos contos de fadas), porém esclarece seu ponto de vista e pontua os argumentos. Nagy oferece um debate repleto de nuances, dentro de um cinema um tanto morno. O saldo é positivo.

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2022.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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