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Crítica


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Sinopse

Cam é um homem divorciado, com dificuldades financeiras. Ele trabalha como motorista para um serviço de aplicativo, mas não tem condições de pagar a pensão do filho pequeno. Ameaçado de perder o direito de ver o garoto, Cam toma uma decisão impensada: sequestrar o bebê de um de seus passageiros, um perigoso traficante de drogas da região.

Crítica

O cartaz com personagens soturnos empunhando armas diante de uma explosão pode dar uma ideia equivocada a respeito deste filme. Caminhos de Sangue (2019) não oferece uma ação genérica, estando muito mais perto de um drama social na fronteira do suspense. A cena inicial desmonta as expectativas de tiros e perseguições ao revelar a solidão do motorista de serviços de aplicativo, esperando por horas dentro do carro, comendo mal e dormindo pouco enquanto aguarda as chamadas que lhe pagam pouco e resultam em encontros com passageiros pouco amigáveis. A sequência de um dia na vida de Cam (Jim Gaffigan) reforça o isolamento do homem divorciado, com poucos amigos e renegado pela família após um trauma que só descobriremos de fato nos dez últimos minutos da trama. Cam está longe de constituir um herói corajoso e inteligente, e tampouco representa o anti-herói perverso. O diretor e roteirista Derrick Borte prefere trabalhar a figura de um homem comum, de poucas qualidades, envolvido num crime que foge de seu controle.

O título original, “Sonhador americano”, remete ao famoso American Dream enquanto dita o tom cínico da produção. Compreende-se que este projeto jamais tenha chegado aos cinemas nem obtido grande sucesso comercial: trata-se de um filme surpreendentemente amargo, no qual erros não são reparados, criminosos não são punidos e mesmo a morte de um bebê não resulta em qualquer forma de condenação. Hollywood permite a presença de figuras malvadas contanto que elas sejam punidas e as vítimas vençam de alguma maneira, que seja concreta ou simbolicamente. Aqui, não há qualquer forma de redenção aos criminosos, nem de recompensa emocional ao espectador. Personagens importantes morrem sem deixar traços, planos criminosos acabam funcionando por desleixo ou desinteresse em investigá-los. O pouco experiente cineasta alemão investe num panorama nada animador dos Estados Unidos contemporâneos, povoados por figuras individualistas e inconsequentes.

Para sublinhar o niilismo, o cineasta recorre a alguns exageros na caracterização dos personagens e dos conflitos. Todos os passageiros de Cam são grosseiros, sem exceção. Todos os homens negros são traficantes, todas as mulheres são agressivas e/ou histéricas, e todos os homens brancos correspondem à figura do loser, o “perdedor” sem dinheiro nem vínculos sociais. O projeto pode ser acusado de preconceitos, mas efetua o curioso caminho de desprestigiar todas as classes abordadas, oferecendo um lado pouco elogioso de cada grupo em tela, o que inclui o personagem principal. Ao mesmo tempo, nota-se uma tentativa desajeitada, porém honesta em equilibrar o discurso: na casa do traficante malandro existe uma avó gentil; o motorista que acaba de sequestrar um bebê para o carro para dar o resto do almoço a um morador de rua. Talvez exista alguma forma de otimismo no fim do túnel, ainda que sem passar pela justiça dos homens, nem pela justiça divina, apenas por erros do sistema. Se alguém sobrevive nesta história, isso ocorre por negligência ou sorte. Enquanto tantos filmes de ação trabalham a ideia de destino, Caminhos de Sangue prefere apostar no encontro de aleatoriedades.

Esteticamente, o projeto não se mostra muito refinado, porém transparece a ambição de Borte a partir de um orçamento reduzido. Presa dentro de um carro durante metade da narrativa, a câmera se esforça em trazer dinamismo, filmando nos ângulos mais improváveis e expressivos. Quando sai pelas ruas, a câmera no ombro adota um despojamento interessante, do tipo que efetua novos enquadramentos dentro de cada plano, enquanto a ação se desenrola. O enfrentamento do traficante Mazz (Robbie Jones) à esposa adúltera Marina (Isabel Arraiza), ou ainda a briga de Mazz com Dontrell (Eric D. Hill Jr.) revela um diretor decido a apostar em planos abertos e longos mesmo durante cenas de ação, contradizendo a cartilha acadêmica do gênero. O diretor se recusa a fragmentar em excesso a montagem, enquanto aposta nos silêncios incriminadores e nos mistérios sobre o trio central para construir uma tensão eficiente. Para um projeto de duração enxuta, o resultado mantém o suspense do início ao fim, abrindo espaço para pontos de vista externos – vide a cena com a ex-esposa Becca (Tammy Blanchard) observando a chegada de Cam.

A narrativa mire em algo próximo do que os irmãos Safdie vieram a desenvolver em Bom Comportamento (2017) e Joias Brutas (2019), sem possuir os mesmos recursos, nem o controle estético da dupla norte-americana para o gerenciamento do caos urbano. Mesmo assim, existe evidente talento e coragem na direção para abordar os temas desta maneira, situando-os num momento muito preciso da História recente (os meses que precederam a morte de Osama Bin Laden). Os atores se entregam sem vaidade em composições “sujas”, que permitem pouco articuladas (caso de Robbie Jones) e o descontrole total (caso de Isabel Arraiza). Se estivesse nas mãos de produtores maiores, estas arestas seriam polidas até desaparecerem. No entanto, a aparência de Filme B resulta nas melhores liberdades deste projeto, que não busca agradar ao máximo número de espectadores para pagar as contas, muito pelo contrário. Poucos atores “nível A” aceitariam interpretar personagens tão questionáveis dentro de um filme insolente, mas o elenco efetua um bom trabalho dentro da proposta extrema do diretor. O resultado apresenta tantas qualidades quanto defeitos, revelando um diretor sem medo de fugir às regras.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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