Crítica
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Sinopse
Um campo militar perto de Lisboa, considerado o maior da Europa, é onde, para além de testes militares de diferentes países, convivem ornitólogos, apicultores, pastores, pássaros, abelhas e ovelhas. O encontro de diferentes mundos e vidas num mesmo lugar possibilita a reflexão a respeito dos nossos conceitos, paradigmas e valores.
Crítica
“Para fixarem as conquistas na memória, os homens criaram histórias. E com o tempo, as histórias tornaram-se memória. Até o ponto em que, às vezes, é difícil distinguir a realidade da ficção”. A frase dita por um narrador oculto, ainda nos primeiros vinte minutos de Campo, revela parte da intenção do diretor português Tiago Hespanha em navegar para além dos limites das convenções da linguagem documental em seu novo longa. Afinal, o trecho da narração acima surge justamente após a cena que acompanha um grupo de soldados na escuridão da noite socorrendo um companheiro gravemente ferido, praticamente à beira da morte. Cena esta que carrega desde o início a dúvida sobre sua veracidade, revelando-se ao final como uma mera encenação. É esse jogo narrativo que Hespanha adota para retratar o universo particular, mas que permite a reflexão sobre uma realidade macro, do Campo de Tiro de Alcochete, ao sul de Lisboa, a maior base militar da Europa com mais de 7.000 hectares.
Lá o diretor acompanha a rotina dos soldados e snipers – não apenas portugueses, mas também de outras nacionalidades – em seus treinamentos e testes com armas, bem como a dos habitantes do entorno desse local embrenhado na natureza e afastado da vida urbana – apicultores, criadores de ovelhas, ornitólogos e madeireiros. Tal cenário, a princípio, é tratado por Hespanha como uma verdadeira representação do Jardim do Éden, do berço da civilização, ainda que o caminho escolhido não seja o do criacionismo cristão, mas sim o da mitologia grega, com Prometeu roubando o fogo de Héstia para oferecê-lo aos homens, causando, assim, a ira dos Deuses. Desde esses primeiros instantes, fica evidente a segurança do diretor acerca de sua proposta, especialmente no quesito estético, algo explicitado no apurado rigor dos planos que buscam amplificar as características metafóricas do texto pela associação com as imagens aparentemente mundanas.
A temática da finitude das coisas – nas dualidades vida e morte, criação e destruição – dominam boa parte das sequências, como a do parto da ovelha e a posterior da morte de outro animal, passando pelo debate dos astrônomos sobre a expansão do universo, pelo tópico do misterioso desaparecimento das abelhas no mundo todo ou mesmo nas divagações sobre a guerra – algo inevitável em um ambiente militarizado. Hespanha aborda tais questões se valendo do formato narrativo tradicional dos documentários em momentos pontuais, como os depoimentos feitos diretamente ao interlocutor, mas, de um modo geral, sua aposta é mesmo num fluxo imagético associativo mais livre que permita uma leitura poética e reflexiva. Algo que faz com uma variação de tom, ora mais grave, ora mais bem-humorado, como no citado diálogo dos astrônomos, ou ainda assumindo de vez a farsa, como na também citada passagem encenada do resgate do soldado ferido.
Em seu trajeto, Hespanha consegue expor algumas ótimas contraposições como aquela entre a beleza e o horror contida no relato do garoto que compõe ao piano em meio aos sons das rajadas de tiros e explosões vindas do Campo – a peça tocada por ele é adequadamente intitulada “Batalha nas Estrelas”. Contudo, ainda que na maior parte do tempo se mostre plenamente ciente do que deseja transmitir, o cineasta, por vezes, se deixa levar pelo excesso de possibilidades, parecendo perder brevemente o foco e atirar para diversos lados em busca de uma nova metáfora. Além disso, o uso dos artifícios estabelecidos inicialmente, como a própria narração em off e sua tônica mitológica ou a brincadeira com os significados da palavra “campo”, parecem ficar mais aleatórios com o decorrer da projeção, assim como fascínio exercido pelo potencial simbólico da realidade do local também se mostra oscilante.
De qualquer forma, ainda que a faceta transcendental almejada por Hespanha possa, às vezes, soar pretensiosa, em seus melhores momentos, Campo exala uma força genuína, quando todos os elementos trabalhados – o apuro plástico, a montagem precisa, a trilha sonora atmosférica, a aura poética – estão em sintonia. É o caso da sequência derradeira, com um belo plano-sequência que registra a passagem de ano no litoral português, quando os estrondos e as luzes dos tiros dos tanques e metralhadoras de Alcochete dão lugar ao som e às cores da queima de fogos, marcando o fim/início de mais um ciclo de vida (e morte), como aquele do castigo eterno destinado a Prometeu por defender a humanidade.
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