Crítica
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Sinopse
Crítica
Enquanto este projeto constrói sua tensão em torno de pessoas perdidas num gigantesco matagal, o suspense se mostra bastante promissor. Afinal, o cenário fornece todos os riscos de que a narrativa precisa: o medo do escuro, a sede e a fome, a desorientação, a interpretação excessiva ou errada dos sons ao redor, as estratégias falhas para sair do local. A ideia de confrontar pessoas à natureza, especialmente em se tratando de um campo de aparência inofensiva, funciona como ótimo motor de conflito, fornecendo inúmeras possibilidades de claustrofobia a céu aberto, de busca de variedade dentro da locação única, ou de dissociação entre som e imagem.
No entanto, visto a velocidade com que a história se desenvolve – em dez minutos de narrativa, os irmãos Becky (Laysla de Oliveira) e Cal (Avery Whitted) já estão perdidos e desesperados, rodando há horas pela grama – percebe-se que o diretor Vincenzo Natali possui outros planos a partir desta premissa. Entram em cena fatores remetendo a alucinações, fenômenos paranormais, tempos cíclicos, vilões perversos, seitas, objetos carregados de poderes e mesmo uma espécie de invasão da grama na vida intrauterina (de verdade). O cineasta do clássico Cubo (1997), conhecido pelas narrativas labirínticas, propõe outra viagem em que se pede ao espectador para suspender a compreensão lógica e apenas embarcar no jogo proposto.
Assim, a cada dez minutos, a trama se ressignifica, se apaga, desprezando o caminho traçado até então. Filmes de terror como o ótimo O Segredo da Cabana (2011) carregavam ambições semelhantes, no entanto, satirizando subgêneros muito específicos do terror e jamais se levando a sério – havia sempre um senso de ridículo nas imagens daquela produção. Quanto a Campo do Medo, a trama investe no tom gravíssimo de cada cena, sem se abrir a chances de variação – cada reviravolta apenas adiciona tensão à cena anterior. Pela facilidade com que a história recomeça, ou com que os personagens são abandonados e retomados no campo, o espectador deve ter dificuldade em se importar com quem quer que seja, torcendo por um desfecho positivo aos protagonistas. Afinal, quando algo realmente ameaçador afeta os personagens, o mecanismo apenas reinicia a diegese, como num videogame. O roteiro é munido de um caráter pueril, inconsequente.
A aleatoriedade contamina as escolhas de imagem, e mais especificamente do próprio campo, o único personagem com quem o diretor parece se importar de fato. Em alguns momentos, este espaço se revela realista, mas em outros, move-se de acordo com vontades cósmicas e efeitos mágicos. Durante o dia, apresenta uma geografia comum, mas à noite, torna-se iluminado demais, com efeitos digitais pouco apurados. Ora a grama representa o perigo comum da natureza, ora ela se transforma numa vontade preestabelecida, um organismo com vontades próprias, cuja artificialidade se converte em cenas questionáveis como as tentativas de estupro do matagal, algo muito próximo do melhor, e mais desenvolvido, A Morte do Demônio (1981).
Atenção: spoilers a seguir!
Aos poucos, a impressão de uma fábula religiosa se torna clara. O vilão (Patrick Wilson), espécie de líder religioso autoritário – forte, musculoso, sedutor, bom de papo, seguro enquanto guia – expressa o escárnio pelos três jovens, por motivos morais: a jovem grávida pensou em abandonar seu bebê com outra família, o pai da criança (Harrison Gilbertson) tinha sugerido o aborto, e o irmão dela manifesta desejos incestuosos. Assim, eles precisam ser punidos neste campo redentor, convenientemente posicionado em frente a uma igreja, com a possibilidade de morrerem quantas vezes forem necessárias até admitirem os seus erros e adotarem o caminho cristão – manter o bebê, ficar com o pai da criança etc. Não por acaso, sairão do campo apenas os arrependidos, transformados pela experiência de tortura psicológica pelo matagal.
O roteiro ainda se dá ao trabalho de comparar Becky à Virgem Maria, sugerindo que seu bebê receberia a visita de três reis magos – representados pelos três homens adultos que disputam sua atenção. É surpreendente que a luta simples do humano contra a natureza seja transformada numa fábula moralista e machista, não muito distante dos moldes de Mãe (2017). O personagem de Patrick Wilson, inclusive, mantém semelhanças notáveis com outro homem arrogante e punitivo, interpretado por Javier Bardem, no filme de Darren Aronofsky. Seja como for, o “campo do medo” é convertido num purgatório, espécie de sedução irresistível para pecadores. Por sua fraqueza de espírito, eles sucumbem a este local como uma droga, um canto da sereia. O fato de a igreja estar sempre vazia também pode representar o fracasso dos protagonistas, que preferem a tentação das vozes ocultas ao caminho fornecido pelo contato com Deus.
Ao fim, resta uma produção dispondo de evidentes recursos financeiros, porém dotada de um roteiro de aparência inacabada, longe de estar pronto para ser filmado e finalizado - como se a marca Stephen King fosse suficiente para lançá-lo. Diversas produções originais Netflix têm despertado essa impressão – não de serem obras malfeitas, e sim elaboradas às pressas, sem tempo de consolidar a ideia, de aparar as arestas, os excessos, as simbologias. Em Campo do Medo, nenhum personagem possui real desenvolvimento, o recurso a uma mulher grávida e uma criança para potencializar a impressão de fragilidade soa fácil demais, os elementos do telefone celular, do mercado abandonado e das gravuras na pedra se tornam apressados. Havia um bom suspense algum lugar, em meio à bagunça que Natali não se propõe a organizar. Ao espectador, resta a sensação de uma brincadeira elaborada não para o espectador, envolvendo-o num jogo de pistas de adivinhações, mas em detrimento dele, sem sua participação.
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