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Crítica


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Sinopse

Rumos diferentes separam duas amigas monstras. Décadas mais tarde, Naiana leciona numa pequena cidade litorânea marcada por uma estranha presença emanante de um hotel em obras.

Crítica

Num beco escuro, dois jovens começam a se beijar. A cena poderia ser banal caso não houvesse um intenso foco de luz projetado sobre eles, além de uma pichação com a palavra “morte” e uma seta, logo ao lado. Ao final do encontro, a garota tem a boca cheia de sangue. Aos poucos, estes encontros se multiplicam. Estamos numa espécie de fusão entre o vampiro, o zumbi e o lobisomem (os personagens adquirem feições animalescas e unhas pontudas). Segundo a legenda, são “monstras”, figuras imortais que atravessam gerações enquanto se comunicam com outros corpos e outras pessoas. A cada ataque, convertem novas pessoas, enquanto suas feridas se curam no dia seguinte. Para os predadores, pouco importa o sexo da vítima, apesar de a maioria dos monstros em questão serem indivíduos LGBT. A narração, inclusive, fica sob responsabilidade de uma mulher transexual.

Um dos aspectos mais interessantes de Canto dos Ossos se encontra na articulação entre a marginalidade dos filmes trash e a marginalidade social de gays, lésbicas e trans. Os diretores Jorge Polo e Petrus de Bairros conferem a uma população fragilizada socialmente os dons da vida eterna, do prazer sem limites e da afirmação orgulhosa de si mesmo. Afinal, os comedores de pescoços não vivem escondidos, com medo de perseguição – eles sequer são reconhecidos pelas normas sociais. Por meio dos olhos coloridos, das unhas modificadas e da liberdade dos corpos, paira a tentativa de unir o LGBT e a monstruosidade pela chave da performance, da reinvenção de si. Quando é flagrada com a boca cheia de sangue, Naiana não se assusta nem revida. Quando se depara com dois homens devorando as vísceras um do outro, um garoto gay não foge, preferindo observar a cena com curiosidade. Estes corpos “monstruosos”, essas personalidades marginais, que andam pela noite, em lixões e lugares abandonados, assumem sua identidade sem receios. “Quem vai definir o que é obsceno?”, pergunta a narradora.

Quanto mais o filme mergulha no universo do terror, melhor ele se torna. Nestas cenas, a fotografia dura e artificial condiz com o registro próximo do pesadelo, enquanto as locações se tornam particularmente expressivas. O sexo entre dois garotos monstruosos, no qual o ataque aos intestinos simula a penetração (algo análogo ao trabalho de Bruce La Bruce em L.A. Zombie, 2010, por exemplo), e especialmente o longo plano-sequência com quatro jovens num lago, conversando e limpando seus corpos após a matança/sexo, constituem pontos altos do projeto. Por esta última cena, em particular, Polo e Bairros demonstram um talento impressionante para enquadramentos, duração dos planos e direção de atores. A mistura entre o naturalismo e o cinema de gênero culmina nesta reunião pacífica pós-coito, entre amigos de sexualidade múltipla, fluida, se banhando juntos – em plena luz do dia, ao invés das trevas.

No entanto, apesar da libertária e libertina incursão pelo terror, o trecho realista se revela muito menos expressivo. O terço inicial, marcado pela rotina na escola e pelas conversas entre Naiana e um fotógrafo num bar (um local convenientemente vazio, sem clientes nem barulhos), soa artificial, com diálogos escritos demais e atuações fracas. Em casos como este, as deficiências evidentes de captação de som, fotografia e montagem se tornam mais visíveis. A experiência é muito diferente quando a produção utiliza as deficiências a seu favor, explicitando-as até o limite do humor (os sussurros incompreensíveis da força do mal, as sobreposições e filtros da imagem), ou quando pretende representar uma rotina comum, sem possuir os recursos necessários para estabelecer um ambiente e um ritmo verossímeis.

Ao mesmo tempo, o roteiro se confunde bastante na alternância entre temporalidades e personagens distintos, nas alusões metafóricas a seitas, símbolos impressos em guardanapos e na crítica superficial às transformações autoritárias da Educação brasileira. Nenhum personagem se desenvolve de fato, limitando-se à função que ocupa nesta alegoria social: a monstra, o demônio, a professora etc. Quanto mais adequa seu discurso às inspirações do cinema marginal e vanguardista, mais coeso soa o discurso de Canto dos Ossos. No entanto, a tentativa de funcionar dentro de uma lógica clássico-narrativa de gênero impede a coesão da narrativa como um todo – vide conflitos bastante amadores como a gravação explicativa via WhatsApp. Para o bem ou para o mal, para cada ótimo encontro sangrento entre os protagonistas existe algum diálogo engessado de jovens discutindo o futuro à beira-mar.

Filme visto na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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