Crítica
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Sinopse
Ex-astro mirim frustrado, Santiago se refugia com o avô para escapar de um revival da carreira televisiva. Mas, ele não imaginava que encontraria o velho determinado a se transformar literalmente num super-herói.
Crítica
Comédia, drama, suspense e terror são, entre outros, aqueles que podem ser considerados “gêneros clássicos” em relação às narrativas cinematográficas. Porém, desde a virada dos anos 2000, um subgênero tem se apresentado com cada vez mais força, a ponto de almejar um lugar cativo entre os acima citados: os longas de super-heróis. Se por um lado imagina-se que para se aventurar por este tipo de ambientação grandes investimentos em efeitos visuais e escolha de locações e cenários sejam necessários, longas como o francês Como Virei Super-Herói (2020) ou o argentino Origens Secretas (2020) estão aí para provar o contrário. As investidas nacionais tem sido tímidas – o irreverente Batguano (2014) ou o irregular O Doutrinador (2018) são algumas exceções. A esses se alia agora Capitão Astúcia, vindo do Distrito Federal – ou de Capital City, como é chamada pelo roteiro – que ainda que apresente tropeços naturais para uma produção independente, deixa claro ter seu ‘coração’ no lugar certo, não só munida de boas intenções, mas capaz de colocá-las a serviço de uma trama que permite mergulhos além das reações imediatas.
Santiago (Paulo Verlings, de Três Verões, 2019) encarna uma figura que de uns tempos para cá tem se tornado frequente, o fenômeno que é mastigado até à exaustão por uma sociedade de consumo e, quando nada tem mais a oferecer, é descartado sem desculpas até ser recuperado, anos depois, apenas para mais uma dose de exploração: o menino prodígio que, ao crescer, deixou de ser interessante ao jornalismo de entretenimento. Conhecido como Kid Pianinho, foi uma criança que frequentava com assiduidade colunas de variedades e programas de auditório, ocasiões que demonstrava sua habilidade ao piano. Agora, adulto, se vê como parte de um movimento de “por onde anda?”, uma sessão nostálgica que visa resgatar talentos do passado para apenas mais um vislumbre de sucesso em frente às câmeras. O problema, no entanto, é que nunca foi feliz como parte disso. Era mais uma questão de atender a uma demanda paterna do que satisfazer uma vontade genuína.
Mas nem toda a família faz parte dessa “conspiração”. Há alguém que pensa diferente, e ao agir por conta própria, sem se preocupar com o julgamento dos demais, aos poucos irá cativá-lo: o avô (Fernando Teixeira, de Aquarius, 2016). Os dois nunca foram próximos, mas durante uma escapada de um – e de uma incapacidade de vigilância acirrada por parte do jovem – esses laços não apenas se formarão, mas também se mostrarão mais sólidos do que poderiam imaginar. Isso porque o ancião pode se esconder por trás dessa imagem de morador de asilo e se diverte com jogos de carta e gelatinas de sobremesa, mas com quem ele, de fato, se identifica, fica por trás desse disfarce. Sua verdadeira face será assumida quando dá vazão ao Capitão Astúcia do título, que não só tem uma missão a cumprir – evitar o plano diabólico do arqui-inimigo Akira Laser – como ainda precisa lidar com outros pormenores, como ajudar o rapaz que, cansado de ser protagonista, encontrará seu lugar não como herói, mas ao lado deste. Um tipo facilmente reconhecível, nem sempre valorizado, mas cuja importância não pode ser desprezada.
Acompanhar um veterano como Teixeira de máscara e capa improvisada defendendo transeuntes e ambulantes contra empresários marcados pelo excesso e pela ganância, é por si só motivo para se dar uma chance a esse Capitão Astúcia. No entanto, o filme escrito (em parceria com Eduardo Gomes) e dirigido por Filipe Gontijo, felizmente, tem mais a oferecer ao espectador, mesmo que esse seja movido por uma curiosidade circunstancial. Esse alinhamento entre extremos – o jovem careta, o velho irreverente – não é uma estrutura nova, mas funciona não só pelo nível de entrega da dupla – a química entre eles é perceptível, tanto pelo acanhamento de um como pela vivacidade de outro – mas também pela inserção de um terceiro elemento que acaba funcionando como elo de ligação: a cuidadora vivida por Nívea Maria. Apesar de ser figura frequente em minisséries e telenovelas, tem aqui recém sua segunda incursão cinematográfica (após o remake Dona Flor e Seus Dois Maridos, 2017), e o faz com tanto vigor e contentamento, que é de se perguntar por que ficou tanto tempo longe da telona. Por mais que não se ofereçam explicações minuciosas a respeito de como os três acabam juntos, é o tom de fábula que os une. E o conjunto termina por funcionar num nível que eleva o todo além das expectativas mais óbvias.
Porém, poderia ser apenas uma brincadeira bem-sucedida, não fosse o interesse do realizador em propor outras discussões. A fantasia permeia o desenrolar dos acontecimentos – há sequências animadas, um bom uso de recursos digitais e um emprego inteligente dos recursos disponíveis, disfarçando eventuais limitações. Mas é a relação entre os personagens, e o subtexto que se percebe em cada uma dessas ligações, que justifica tamanho esforço. Entre um senhor que oferece seus últimos gritos de liberdade como exemplo e um rapaz em busca de um norte para si, ambos precisam encontrar seus rumos, por mais que tais decisões estejam longe de serem fáceis. Capitão Astúcia, assim, alcança o feito raro de divertir pela dinâmica dos acontecimentos, ao mesmo tempo em que proporciona reflexão a partir de diálogos sinceros e um mise-en-scène que, além da honestidade do que reúne como oferta, tem a acrescentar uma percepção compartilhada, que se efetua não em si, mas na leitura de cada um na audiência. E essa, sim, é a maior das suas ousadias.
Filme visto em abril de 2022, durante o 18º Fantaspoa
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Robledo, agradecido por esta visão tão fina e esclarecedora.