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Sinopse

Em Caracas, Giordano Fonte é um escritor que vagueia por uma Nápoles que envolve e aterroriza, mas ao mesmo tempo fascina. Acompanhado por um homem conservador prestes a se converter ao Islamismo, ambos buscam uma verdade existencial. Exibido no Festival de Cinema Italiano no Brasil 2024.

Crítica

No começo do cinema, os espectadores ainda assombrados pela novidade não tinham repertório para compreender certas coisas que atualmente são bastante comuns. Por exemplo, quando um realizador criava uma cena de sonho ou flashback, ele precisava utilizar algum elemento visual (esfumaçado nas bordas da imagem, por exemplo) que a diferenciasse da camada narrativa principal, a fim de que a plateia não se perdesse na jogada. Na medida em que o público foi sendo sofisticado pela constância da experiência cinematográfica, cineastas começaram a ter mais liberdade para criar dúvidas entre esferas diferentes da história. Desse modo, começamos a ter produções mais complexas nas quais às vezes o sonho e a realidade se confundem – a fim de provocar uma sensação de desorientação. Caracas, um dos títulos do 19º Festival de Cinema Italiano no Brasil, se beneficia da evolução da percepção do espectador, pois o embaralhamento entre verdade e invenção é um dos seus princípios narrativos. O protagonista é Giordano (Toni Servillo), renomado escritor napolitano de volta à sua amada terra natal. De comportamento sempre um tanto abismado diante do mundo que ele não reconhece mais, começa a perambular pela cidade meio sem objetivo, logo se deparando com gangues infantojuvenis e com Caracas (Marco D'Amore, também diretor), fascista em busca de uma conversão salvadora ao islamismo.

Mesmo que Giordano seja o protagonista, a trama de Caracas começa com a observação do personagem-título participando de uma investida neonazista contra um subúrbio de Nápoles recheado de estrangeiros migrantes e/ou refugiados. A agressividade do grupo de homens supremacistas cai como um trovão nessa comunidade que ocupa um espaço degradado da cidade. Depois vem o arrependimento do homem decidido se converter ao islamismo ao testemunhar a barbárie em seu estado mais puro. No entanto, é forçada essa queda em si do sujeito que minutos atrás, mesmo relutantemente, acenava de maneira positiva ao líder fascista pregador da brutalidade como forma de “purificar” a comunidade. E antes que a trama seja abruptamente cortada pela chegada de Giordano (num movimento que parece o início de outro filme), vemos Caracas tentando se aproximar de culturas diferentes, envolvido amorosamente com a dançarina Yasmina (Lina Camelia Lumbroso). É um trajeto inocente de conscientização, repleto de romantismos e pouca profundidade sociocultural, feito da purificação de alguém encontrando na fé outro ideal. As coisas se embaralham quando Giordano aparece em outra linha narrativa, exibindo sua paralisação nem sempre justificável pela diferença entre a Nápoles de antes e a de agora. Apresentando as coisas de maneira solta, o filme vai se embananando.

Marco D'Amore se sai melhor como ator do que nas tarefas simultâneas de roteirista e diretor. Como intérprete, cria uma figura fisicamente imponente que até consegue expressar a fúria dos oprimidos se transformando em agressividade potencialmente devastadora. Mas os mesmos elogios não podem ser feitos à estruturação da trama e como ela é contada audiovisualmente. Giordano é um autor que escreve sobre um homem radical tentando se converter ao islamismo, logo integrando uma comunidade multicultural que antes ele rechaçava com o seu extremismo tipicamente fascista. Então, podemos imaginar que Caracas não é bem uma figura de carne e osso, mas uma projeção desse protagonista que sai das páginas para dialogar com o autor e lhe mostrar caminhos. Ou seria justamente o contrário, as vivências com o rapaz é que inspiram Giordano a colocar tudo no papel? Isso não fica muito claro em Caracas. E essa dúvida poderia ser um componente estimulante caso Marco soubesse transitar entre realidade e invenção deixando em uma resquícios instigantes da outra. Infelizmente não é isso o que acontece. O resultado é mais confuso do necessariamente excitante. Isso porque o cineasta não articula bem as conexões entre a personalidade do autor e do ex-fascista, tampouco criando um discurso veemente sobre os itens citados, tais como autoritarismo, memória, nostalgia e pertencimento.

A sensação predominante diante de Caracas é a de tentar se agarrar a uma superfície lisa. E, novamente, isso poderia garantir a intensidade da nossa experiência com o filme, desde que Marco D'Amore fizesse das interrogações portas de entrada para discussões e percepções bem mais complexas do que o simplista jogo memorialístico-nostálgico-criativo que ele tenta criar. Assim, na medida em que tudo continua mais confuso do que instigante, mais involuntariamente embaralhado do que criativamente caótico, vamos perdendo o interesse, deixando de nos importar com os personagens e seus questionamentos práticos e/ou filosóficos. A viagem interna do autor atravessado pela saudade (que nunca vira um motor suficientemente forte) se torna tão monótona quanto as idas e vindas de Caracas e Yasmina. A jornada do brutamontes rumo à iluminação religiosa e à sensação de pertencimento não é menos descartável do que o fiapo de espaço que o filme fornece à garota rechaçada por seus pares depois de deixar de lado algumas exigências como o véu que deveria lhe cobrir a cabeça. Chafurdando nas tentativas cada vez mais ineficientes de iluminar Giordano a partir de Caracas e vice-versa, Marco D'Amore demonstra coragem para desafiar o espectador com a sua abordagem menos linear e determinista. Porém, ele não dá conta dos desafios dessa bem-vinda incerteza e de todo o resto.

Filme visto no 19º Festival de Cinema Italiano no Brasil em dezembro de 2024.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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