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Sinopse

Em 1989, Dráuzio Varella inicia um trabalho voluntário de atendimento de saúde, principalmente de prevenção e combate a AIDS, na então maior casa de detenção da América Latina, o Carandiru. Quando o médico começou a trabalhar na penitenciária, havia cerca de 7 mil detentos para pouco mais de 5 mil vagas. Em seu trabalho diário, Varella conheceu não apenas a rotina e os anseios dos presos, mas também as histórias de suas vidas.

Crítica

Carandiru chegou aos cinemas com muita expectativa, e por vários motivos. Se antes mesmo de Cidade de Deus (2002) estourar nas bilheterias nacionais como um dos favoritos do público um ano antes – isso sem contar seu excelente desempenho também junto à crítica – isso já era uma verdade, a similaridade das temáticas destes dois projetos só fez aumentar as expectativas relativas à volta do cineasta argentino – naturalizado brasileiro – Hector Babenco às telas. Responsável por clássicos nacionais como Pixote: A Lei do Mais Fraco (1981) e O Beijo da Mulher Aranha (1985) e respeitado internacionalmente por títulos como Ironweed (1987), Babenco estava finalmente associado a um material de potencial mais amplo, após o fracasso de sua empreitada anterior, o semi-autobiográfico Coração Iluminado (1996): a adaptação para o cinema do livro “Estação Carandiru”, de Dráuzio Varella, um best-seller com mais de 400 mil cópias vendidas. Uma aposta que parecia garantia de sucesso.

Carandiru não é muito diferente de “Estação Carandiru”. O que muitas vezes é um mérito, aqui termina por revelar alguns revéses. Isto porque enquanto obra literária desde o início estamos cientes que seremos conduzidos por uma viagem muito pessoal através do maior presídio da América Latina num período particularmente específico – os meses anteriores ao massacre promovido em 1992, quando 111 presos foram assassinados pela tropa de choque policial convocada na ocasião para terminar com uma rebelião no local. Tal evento, vê-se, é o clímax da narrativa, tanto no livro quanto no filme.

É, portanto, o dr. Dráuzio que nos leva para conhecer um pouco do que ele próprio viu durante os anos em que trabalhou lá, desenvolvendo um projeto de prevenção à AIDS. Ou seja, a posição passiva de espectadores nos é confortável, pois são os olhos de outro, na verdade, que são confrontados com tais revelações. Já em Carandiru a situação é diferente. O médico continua lá, mas agora ele não tem nem nome: é apenas o “doutor”, uma figura decorativa, existindo apenas como subterfúgio para que diversas histórias – a maioria retirada do próprio livro – sejam exploradas dramaticamente. Como ele não importa, não tem relevância, somos nós, os espectadores, que precisamos enfrentar àquela realidade. E ela incomoda. E machuca. Nunca, no entanto, a ponto de afastar nossa atenção. Apenas a torna desconfortável.

E por quê? Porque nos sentimos como numa visita guiada, protegida, realizada em segurança: não somos colocados realmente “dentro” do que é vivido na tela. Assim, com esse distanciamento frio e calculista, o espectador pode ficar mais confortável na sua poltrona enquanto as maiores atrocidades rolam soltas na tela. Aquilo não tem nada a ver com ele mesmo.

Carandiru é um filme que impressiona ao ser visto, pois tecnicamente perfeito, mas distante, asséptico, frio. A forma como o diretor manipula as imagens exibidas chega a se destacar diante olhos mais sensíveis. Tudo é ensaiado, lírico, quase poético, e fica difícil crer na realidade destas situações, e até mesmo que um massacre como aquele teve vez no cotidiano de pessoas como estas, e não que tenha sido somente fruto da imaginação de um roteirista mais criativo em busca de sangue. Se em vista de um público mais abrangente isso possa significar um sacrifício menor, para a integridade da obra este é um pecado a ser superado no seu entedimento total. Uma falha, mesmo que não comprometa seu resultado como um todo. Afinal, em última instância – e a despeito de suas origens – estamos diante de uma obra de ficção. E como tal deve ser percebida.

Tais contradições não devem eclipsar os méritos evidentes de Carandiru. O maior e mais evidente é seu elenco perfeitamente entrosado, uma reunião bastante singular de talentos – consagrados ou não. Nomes como Milton Gonçalves (Seu Chico), Maria Luísa Mendonça (Dalva), Floriano Peixoto (Antonio Carlos), Caio Blat (Deusdete), Enrique Diaz (Gilson) e Antonio Grassi (Sr. Pires) estão em desempenhos marcantes, do mesmo modo que os (até então) novatos Wagner Moura (Zico), Ailton Graça (Majestade), Lázaro Ramos (Ezequiel) e Milhem Cortaz (Peixeira) começaram aqui a explorar novos caminhos e possibilidades para seus talentos dramáticos.

Se há alguém que, infelizmente, soa deslocado neste painel é justamente o mais lembrado: Rodrigo Santoro. Como o travesti Lady Di, ele, apesar de competente como sempre, não consegue um bom resultado, acima de tudo devido a fatores que fogem do seu controle, como a pouca profundidade do personagem, os demais atores com quem contracena (exemplificado principalmente na equivocada dupla que forma com Gero Camilo) e na pouca atenção que o tipo que personifica – os travestis – recebem durante a história. Lady Di não tem passado, contexto e nem importância. Como cada vez que entra em cena o máximo que consegue é provocar risos de constrangimento e de curiosidade devido ao absurdo da situação, poderia se imaginar que estivesse sendo empregado como alívio cômico – o que seria errado, para não dizer preconceituoso. O melhor é acreditar que tenha sido um erro de quem o colocou neste papel, por não ter sido capaz de prever as conseqüências. Muito melhor teria sido apostar em um ator desconhecido. Santoro, como travesti, não consegue se dissociar da persona que construiu enquanto artista. Não se vê mais uma miserável na tela, e sim o ator de Hollywood. Uma provação que destoa do resto de sua carreira.

O visual de Carandiru, por outro lado, é surpreendente. A fotografia de Walter Carvalho, um dos maiores profissionais da área no Brasil, é nunca menos do que perfeita, atingindo resultados únicos. Assim como a trilha sonora, sempre presente, porém nunca exagerada, ou a direção de arte, atenta aos mínimos detalhes. Se fosse possível, percorria-se toda a lista de créditos finais, já que poucos são os profissionais lá listados que não mereçam os parabéns. Se há poréns em relação a este projeto, esses estão, em sua maioria, na direção por vezes maniqueísta de Babenco, que não consegue se fixar em seu objetivo primordial: contar uma história, e não pregar uma tese. Não está em questão se os bandidos que lá se encontravam mereciam ou não o fim que tiveram, ou se a força policial foi abusiva como diz a lenda. Um filme como Carandiru tem – ou deveria ter – a finalidade de levantar discussões, incitar polêmicas, provocar idéias e debates. Mas isso, infelizmente, não acontece, já que o produto pasteurizado entregue traz tudo mastigado, sem repercussões. Enquanto peça de entretenimento é válido, é um ganho para a nossa cinematografia e merecedor dos reconhecimentos obtidos. Entretanto, quando se imagina o que poderia render, é impossível não sentir uma certa decepção. Um ressentimento que cala fundo, porém superado com novas obras que souberam se encarregar dessa missão. Como Tropa de Elite (2007), por exemplo.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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