Sinopse
Carmen passou boa parte de sua vida cuidando do irmão numa vila ensolarada de Malta. Quando esse homem morre, Carmen se encontra próximo aos 50 anos de idade e finalmente liberada para fazer o que bem entender.
Crítica
Quem é Carmen? Talvez nem ela mesma saiba. E a busca por essa resposta é que movimenta a ação de Carmen, longa escrito e dirigido pela cineasta Valerie Buhagiar. Nascida na ilha de Malta, no meio do mar Mediterrâneo, porém criada no Canadá, a realizadora voltou ao seu país de origem por uma história bastante pessoal, na qual se conecta com sua origem e investiga uma possibilidade para tantas mulheres daquela região, inclusive para si mesma. Afinal, quem nunca se questionou: “e se a minha vida tivesse sido diferente?” O que teria lhe acontecido se, ao invés de partir, tivesse ficado? Se sua criação tivesse sido outra? Se tivesse nascido nem mesmo um século, mas apenas algumas décadas antes? É provável que a diretora tivesse tido o mesmo destino de sua protagonista, ao menos no ponto em que essa se apresenta em cena. A partir de uma virada, no entanto, pega para si a responsabilidade de escolher qual caminho tomar, onde dar o próximo passo e em qual direção seguir. Pode parecer algo simples, mas nesse caso, é o suficiente para fazer a diferença pela qual nem ela mesma tinha ciência de aguardar.
Malta é uma das menores nações europeias, contando com pouco mais de 300 km2 e menos de meio milhão de habitantes. De forte influência religiosa, principalmente católica – até pela proximidade com a Itália e o Vaticano – é apontado como “o país mais religioso do continente” e conta com dezenas, senão centenas de igrejas por todo o arquipélago. Nesse cenário, se tornou comum uma tradição incomum, mas vista como normal por aqueles que a praticam: cada família se esforça para ter muitos filhos e que ao menos um dos meninos siga na formação paroquial. Porém, ele não estará sozinho nesse caminho “dedicado a Deus”: a irmã mais velha deverá acompanhá-lo, atuando como secretária e empregada doméstica, se encarregando de todas as obrigações corriqueiras do dia a dia – cuidar da casa, da alimentação, das funções eclesiásticas – as quais ele, supostamente um ser “elevado”, não teria como desempenhar por si só. É a mulher, portanto, do homem que deveria ser sozinho, mas se mostra incapaz de atender as responsabilidades que dele se esperam. Esse viés crítico, obviamente, escapa à maioria, principalmente àqueles diretamente envolvidos.
Quando seu irmão, o pároco do vilarejo, subitamente morre, Carmen (Natascha McElhone), a que sempre esteve ao lado dele, se vê de uma hora para outra sem ter o que fazer nem para onde ir. Sem família, amigos ou mesmo conhecidos próximos, a ela foi proibida qualquer tipo de relação íntima, devotando sua existência, ao menos até aquele momento, ao cuidado daquele com quem compartilhava os mesmos pais. Carmen está, agora, sozinha. Dela não se espera mais nada, nem mesmo dar sequência à única rotina que conhece: com a eminente chegada de um novo padre, esse também deverá estar acompanhado de uma irmã, tornando os serviços daquela que ocupava esse posto até o dia anterior, portanto, desnecessários. Buhagiar, também atriz (com mais de 50 créditos, tanto no cinema como na televisão) e produtora, não tem pressa em oferecer uma solução aos problemas que sua protagonista tem pela frente. Pelo contrário, lhe oferece tempo tanto para sofrer, como também para sonhar.
Essa, afinal, termina por ser a principal chave de entendimento de Carmen: a fantasia. Afinal, sua própria existência é tão inacreditável, que somente partindo do improvável para se admitir uma solteirona envelhecida, sempre vestida de preto e com cabelos grisalhos e malcuidados possa se tornar, após uma troca de figurino e um corte mais moderno, na beldade que até pouco tempo atrás surgia nas telas encantando galãs como Brad Pitt (Inimigo Íntimo, 1997) ou George Clooney (Solaris, 2002). As lembranças de um trauma no passado também vão aos poucos fornecendo pistas a respeito dos motivos que a levaram a aceitar de forma tão pacífica o destino que lhe foi imposto, mas também apontando para a chama que preserva dentro de si, capaz de levá-la a situações até então impensáveis, como se esconder dentro da cabine de confissão – e com seus conselhos mudar a vida daqueles ao seu redor de modo muito mais eficiente do que seu irmão jamais ambicionou – ou tratar de fazer um ajuste por conta própria com a Igreja Católica: o que alguns veriam como roubo, para ela nada mais era do que justiça pelo tanto que fez e pelo modo como foi descartada sem maiores cerimônias.
Por mais que homens surjam em seu caminho – do jovem antiquário (Steven Love, da série Locke & Key, 2020) ao marinheiro despreocupado (Richard Clarkin, de Stardust, 2020) – o dilema vivido por Carmen está longe de estar atado a uma simples questão romântica. Assumidamente feminino e feminista, este é um filme sobre a emancipação de uma mulher que há muito esqueceu não apenas do processo natural das coisas, mas de si mesma, e é na busca dessa personalidade a que irá dedicar o tempo livre que tem, pela primeira vez em muitos anos, diante de si. Carmen, portanto, sabe ser leve quando necessário, explorando com propriedade um cenário não muito comum nos cinemas, mas ainda assim encantador o suficiente para motivar a curiosidade da plateia, mas também dono de um subtexto profundo e intrigante, que vai da posição que elas há muito vêm ocupando em uma sociedade cada vez mais atenta a questões de diversidade e representatividade, mas também quanto ao reconhecimento que aqueles que, normalmente, agem apenas nos bastidores, merecem antes do apagar as luzes.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Robledo Milani | 6 |
Miguel Barbieri | 6 |
MÉDIA | 6 |
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