Sinopse
Crua, mal passada, ao ponto, passada e bem passada. Diferentes fases da vida das mulheres através de vozes femininas.
Crítica
O título do excelente curta-metragem de Camila Kater não é gratuitamente alusivo à forma pejorativa como muitas vezes as mulheres são encaradas em sociedade. Isso, pois a cineasta se apropria com brios dessa deturpação naturalizada para levantar questionamentos absolutamente pertinentes e urgentes quanto à objetificação dos corpos femininos. Valendo-se de cinco depoentes que quase nunca aparecem em cena, ela constrói segmentos animados com técnicas distintas, sempre buscando atrelar o conteúdo e, por conseguinte, as características físicas de cada personagem instada a compartilhar dados concernentes à fisicalidade, às distorções dos olhares externos. Os dizeres apontam a uma opressão cuja fonte é a miríade de expectativas e preceitos tacanhos dessa nossa coletividade doente, ainda desproporcionalmente construída em torno da ideia de uma masculinidade dominante. Se trata de um manifesto criativo e forte de reconhecimento e consciência.
O primeiro segmento, denominado Crua, fala da luta inglória contra a balança fomentada por toda sorte de pontuações, sejam as familiares e/ou as escolares, que geram uma demanda castradora. Os dizeres de Rachel Patrício expõem o nascedouro de uma angústia relacionada ao fenótipo. Transitando do lúdico ao terrífico, Camila mostra essa obsessão com as linhas físicas femininas enquanto algo tão associado à experiência das personagens que se torna, em muitas ocasiões, um martírio. Em Mal Passada, Larissa Rahal discorre acerca da menstruação, igualmente lançando luz sobre algo completamente natural, mas que, por força desse falocentrismo asfixiante, acaba adquirindo propriedades de tabu. A característica aquarelada do visual se encarrega de sublinhar a reminiscência pré-adolescente que segue trilhando o caminho da constatação das violências perpetradas cotidianamente em diversos círculos, inclusive sendo reproduzidas por meninas.
Carne é um curta-metragem sucinto e incisivo, múltiplo imageticamente, mas focado na costura dos depoimentos para consolidar o feminino enquanto entidade. A despeito das idiossincrasias de cada história, Camila sinaliza os nós que as dispõem como mais ou menos comuns a todas. Em Ao Ponto, Raquel Vigínia aponta à hiperssexualização de determinado biótipo, além de trazer à tona a vivência transexual e uma necessidade opressora de manter-se disciplinada para não ser jogada constantemente numa corda bamba. Em Passada, Valquiria Rosa se detém nos dilemas da menopausa, transitando pela ignorância masculina quanto a esse estágio. Camila se vale nesse segmento do stop motion com bastante habilidade, trabalhando principalmente a simbologia a partir de signos como vagina, seios e útero. Há uma progressão cronológica.
Por fim, Helena Ignez, em Bem Passada, toca na "ferida" na velhice, daquilo que abala a vaidade. A atriz/diretora faz uma reflexão, embora breve, como as demais, profunda e sintomática dessa mirada pungente de Carne. Ela traz à baila a ideia de certa consagração profissional atingida na maturidade, embora também mencione que sua trajetória artística comportou reconhecimento na juventude. Camila capta a essência de Helena por meio da colagem, se valendo de Sônia Silk, a icônica protagonista de Copacabana Mon Amour (1970), e sua máxima “eu tenho pavor da velhice”. Além do poder sintético das falas, do entrelaçamento denso dos fragmentos, a realizadora demonstra particular habilidade ao conceber as animações, fazendo-nas desempenhar papel fundamental, pois não restritas à ilustrar, já que dialogam minuciosamente com o verbo.
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