Crítica
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Sinopse
Elena discute com um entregador de pizza, a polícia é chamada, uma arma dispara e o namorado dela fica paraplégico. Anos depois, o entregador é solto da cadeia e seu caminho volta a cruzar o de Elena.
Crítica
Era uma vez uma prostituta que deu à luz em um ônibus. O caso ficou famoso em Madri e a prefeitura lhe concedeu acesso gratuito ao transporte público de forma vitalícia. Todos acreditavam no futuro do rapaz que nascera nessas condições inusitadas. Porém, aos 20 anos, ele se apaixona por uma garota que o ignora. A polícia é chamada. Um dos oficiais é ferido. Mais um salto no tempo e estas vidas voltam a se entrelaçar. Pelo enredo, parece sinopse de novela das oito querendo ser polêmica, não é? Mas melodrama é a raiz das histórias de Pedro Almodóvar. Ou seja, não poderia ser diferente com Carne Trêmula.
Adaptado da obra de Ruth Rendell, o filme é considerado o primeiro de uma nova fase do cineasta, em que a atmosfera kitsch, as músicas românticas/bregas e os crimes passionais continuam a predominar, mas agora com um toque mais refinado, artístico (não que já não o fosse antes), com a escatologia deixada de lado. É o amadurecimento de um diretor e roteirista que sabe cutucar a ferida da Espanha onde vive, preferindo voltar seus olhos para a psicologia como fator determinante dos aspectos sociais. Especialmente de seus personagens, mais do que nunca, cada vez mais ricos, complexos e loucos.
É claro que o aspecto realista continua longe de suas histórias. Os encontros e desencontros de seus personagens, que muitas vezes beiram à coincidência simples, podem até parecer manjados demais. Realmente, como numa telenovela. Porém, tudo faz sentido na história que Almodóvar quer contar, um misto de amor, vingança e obsessão. Especialmente quando os próprios nomes envolvidos na história parecem não se dar conta das consequências de seus atos. Aliás, quem são eles, afinal? Victor (Liberto Rabal), o garoto que teve a vida destruída por um erro; Elena (Francesca Neri), sua paixão, agora casada com David (Javier Bardem), um policial que ficou paraplégico e que é o melhor amigo de Sancho (José Sancho); este, casado com Clara (Ángela Molina), que será peça fundamental na trama. Revelar mais detalhes de cada um é estragar as surpresas do roteiro recheado de reviravoltas.
É uma história de amores doentios, daqueles que o cineasta tanto gostar por chegarem ao extremo. Extremo da violência psicológica, inclusive. Não à toa um deles solta lá pelas tantas para seu “amor”: “vou continuar explorando seu complexo de culpa”. Muito antes de Closer: Perto Demais (2004), estes personagens já jogavam na cara uns do outros as verdadeiras discussões de casais (ou quase casais, dependendo dos casos citados aqui). As DRs não são gratuitas ou feitas apenas para chocar. Almodóvar utiliza estes diálogos como fios condutores da trama, que fazem entender muito mais não apenas cada personagem em si, mas também o que eles pensam. A sinceridade impera em cada fala e é proferida das mais diferentes formas, de acordo com a personalidade de cada um que está em cena.
Se o cineasta já estava desenvolvendo seu estilo desde o início da carreira, aqui ele parece ter lapidado de vez todos os aspectos que permeiam suas obras, garantindo uma aura de diretor e roteirista completo que poucos conseguem igualar ou sequer chegar perto. Carne Trêmula, denso e apreensivo na mesma medida, parece uma preparação para o aprofundamento ainda maior nas questões “almodorovianas”, já que seu próximo filme seria justamente Tudo Sobre Minha Mãe (1999). Parafraseando uma cantora com uma sentença que o próprio diretor adoraria usar, “é tiro, porrada e bomba”. Em todos os sentidos.
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