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Crítica


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Onde Assistir

Sinopse

Em Carropasajero, o som do metal rangendo como se estivesse prestes a quebrar. Uma velha caminhonete adaptada para transportar passageiros atravessa o deserto de La Guajira, na Colômbia. Com o vento chegam vozes que se fundem entre os passageiros que ali viajam. Uma mulher Wayuu retorna ao seu território, acompanhada de sua família, após anos de exílio devido a um massacre paramilitar. Uma viagem cíclica onde as camadas temporais do território se tocam e a fronteira entre os vivos e os mortos se dilui.

Crítica

Os momentos iniciais de Carropasajero anunciam o ritmo lento e contemplativo com o qual lidaremos por cerca de 100 minutos. A câmera se desloca vagarosamente revelando as ferragens da carroceria de uma camionete, o deserto de La Guajira, na Colômbia, e as pessoas que fazem uma espécie de viagem sobrenatural ao encontro dos seus antepassados. Definitivamente, os diretores Juan Pablo Polanco Carranza e Cesar Alejandro Jaimes não estão nem um pouco preocupados com o aspecto informativo nesse filme híbrido (em que ficção e documentário são quase indiscerníveis). Na verdade, sabe-se mais sobre o contexto da viagem ao ler a sinopse do que ao passar pela prova de resistência ao qual o filme submete o espectador. Resistência, pois não é fácil manter a atenção na telona à medida que os cineastas oferecem poucos atrativos num redemoinho de rememorações poetizadas e repetições cansativas. A protagonista é uma mulher da etnia Wayuu – também chamada guajiro, os nativos daquela região – que está regressando para o território de seus ancestrais antigamente varridos de lá por um massacre paramilitar. O que temos ao longo dessa jornada é uma alternância entre imagens bonitas e uma narração maçante com viés lírico. Um ciclo de reiterações que faz do filme uma experiência dura que reivindica do espectador muito mais do que oferece em troca nessa comunicação truncada.

Selecionado para a Mostra Território do CineBH 2024, Carropasajero tem boas intenções. A primeira delas diz respeito a realizar um tipo de cinema menos preocupado com as convenções narrativas do que com a construção de uma experiência bastante singular. Juan Pablo Polanco Carranza e Cesar Alejandro Jaimes tentam fazer uma evocação fantasmática em forma de filme ao colocar seus personagens transitando pelo deserto, conversando com os mortos, se referindo vagamente aos acontecimentos trágicos que marcaram a sua gente num tempo caracterizado pela dor, às vezes mesclando as pessoas à paisagem para oferecer a sensação de que tudo é uma coisa só. Em suma, é louvável essa tentativa de escapar da mesmice para tentar algo diferente, a fim de estabelecer uma relação sensorial entre narrativa e plateia. No entanto, novamente, a dupla de realizadores oferece pouco em troca da cumplicidade que pedem ao espectador. De fato, a fotografia assinada por Angello Faccini é o grande destaque desse longa-metragem, sobretudo a maneira como vai desenhando visualmente a reconexão dos personagens com seus antepassados e o terreno do qual eles foram expulsos. Principalmente quando a câmera é aberta para contextualizar as pessoas no cenário inóspito, ao menos o filme nos presenteia com imagens interessantes por sua perspectiva poética. Pena que os cineastas são valorizam isso.

Outro ponto a ser ressaltado sobre Carropasajero é a maneira como Juan Pablo Polanco Carranza e Cesar Alejandro Jaimes constroem a cosmologia indígena, ou seja, a forma como aludem ao universo cultural e espiritual dos Wayuu. Como estrangeiros não indígenas, os cineastas optam por excluir a naturalidade, por exemplo, da conexão que os vivos têm com os mortos. Assim, toda cena em que alguém cita essa comunicação ou encena a conversa com desencarnados é marcada por uma aura espetacular, como se fora um momento indicativo de algo extraordinário. Essa cultura não faz parte do cotidiano de Juan Pablo e Cesar que, evidentemente, tendem a sublinhar o aspecto admiráveis e cerimoniosos. Podemos especular que caso o filme fosse realizado por um nativo Wayuu as cenas de interação com os mortos ou os momentos em que alguém fica parado no deserto lambido pelo vento seriam menos mistificadoras. Não que isso signifique méritos ou deméritos, mas é um forte indício do estrangeirismo, desse olhar exótico diante da cultura do outro, da transformação daquilo que aos indígenas é banal em algo formidável e sobrenatural. Os personagens não são indivíduos, tampouco viventes que tentam perpetuar uma etnia resiliente que sofreu agressões inomináveis no passado. São corpos cuidadosamente colocados em cena para ecoar de modo poético sintomas desse olhar externo.

Carropasajero inviabiliza a percepção do tempo. A narrativa circular e repetitiva cria uma experiência na qual é difícil entender se passaram 15 minutos ou uma hora entre os segmentos. Aparentemente de maneira proposital, Juan Pablo Polanco Carranza e Cesar Alejandro Jaimes convidam o espectador a vivenciar essa suspensão sem distrações que possam atrapalhar um possível mergulho na reentrada poética de um povo na terra onde pairam os fantasmas da opressão. Porém, o tiro sai rapidamente pela culatra. Aquilo que poderia ser uma jornada intimista de reconexão com passado e território vira um emaranhado de imagens semelhantes emolduradas por uma narração não menos aborrecida e pouco convidativa/provocativa. Como ficção, o filme tenta criar uma realidade indeterminada que engloba o que os olhos veem e o que somente os Wayuu têm acesso por direito herdado. No entanto, nada além de imagens ocasionalmente bonitas e um desenho sonoro encarregado de adicionar camadas perceptivas. Do ponto de vista documental, a dupla de realizadores deixa ainda mais a desejar, pois o distanciamento radical de qualquer valor informacional obscurece quase completamente o contexto. Em 10 minutos o filme disse a que veio. Nos demais 90 minutos, se contenta em repetir tudo como se fosse um disco riscado, tentando criar um vórtice para falar do outro mistificado.

Filme visto no 18º CineBH, em setembro de 2024.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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