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Sinopse
A rotina repetitiva e modorrenta de uma família que administra uma pequena carvoaria do interior muda depois de uma proposta inusitada. Ao abrigar um homem que precisa se esconder do mundo, Irene, Jairo e Jean se revelam.
Crítica
O cinema frequentemente alimenta uma dicotomia reducionista entre as vivências urbana e rural. Muitas vezes as metrópoles são observadas como áreas de perdição onde os vícios tendem a superar as virtudes. E essa abordagem comumente tem como contraponto o campo idílico. Pensando na cinematografia brasileira, artistas como Humberto Mauro e Amácio Mazzaropi reiteraram em vários de seus filmes a ideia de um interior paradisíaco em que a vida transcorre de modo simples e menos asfixiante. Em Carvão, a cineasta Carolina Markowicz rompe com esse imaginário provinciano marcado por bondade e candura. Todavia, é preciso enfatizar já nos argumentos iniciais deste texto: ela não utiliza uma corrente de mal absoluto para eletrificar as tensões no local superficialmente terno e convidativo. Neste filme, a busca não é por expor de modo simplista que o mal habita até nos rincões menos prováveis. A contradição do lugar-comum “no campo tudo é mais sossegado” está a serviço de algo mais profundo. Há a revelação de que o romantismo atrelado a esse ambiente é apenas um estereótipo encarregado de camuflar inquietações semelhantes às identificadas no âmbito cosmopolita, ainda que ambos os ecossistemas tenham características próprias. Um dos méritos desse longa-metragem é evitar que as relações de causa e consequência, de ação e reação, monopolizem o seu discurso.
Irene (Maeve Jinkings), Jairo (Rômulo Braga) e Jean (Jean de Almeida Costa) formam uma família sustentada a duras penas pelo trabalho na pequena carvoaria instalada no quintal. Há um quarto elemento, o corpo idoso em colapso do pai da matriarca, que definha por conta de um problema de saúde crônico. Os adultos pressionados pelas dificuldades financeiras aceitam uma proposta indecorosa da recém-chegada funcionária do posto de saúde local. O ato espúrio que Irene se submete a cometer, inicialmente em prol do equilíbrio financeiro, serve como deflagrador das ondas de sordidez que chicoteiam o cotidiano dessa família dali em diante. Contudo, Carolina Markowicz evita que a atitude da protagonista seja compreendida apenas como fruto do desespero e da necessidade. Ela distribui ao longo da trama indícios de que há muito mais coisas entre o céu e o inferno do que supõe a nossa inocente e vã filosofia. A chegada de outro corpo, agora um estranho (e o idioma estrangeiro serve para acentuar esse estranhamento), enfatiza que existe ali uma natureza revolta por uma série de questões anteriores ao crime cometido supostamente por urgências econômicas. Para isso é imprescindível a direção de atores e, claro, o desempenho notável dos mesmos. Ninguém é estritamente algo e pronto. E a captura da complexidade se mostra fundamental para não restringir o filme à radiografia o mal.
Considerar Carvão unicamente como a exploração de um mal natural dos homens, resgatado das profundezas pela necessidade, seria simplifica-lo. Carolina Markowicz até vai envergando as nossas concepções rumo à leitura de que o traficante escondido na casa dessa “família de bem” talvez esteja mais vulnerável do que Irene, Jairo e Jean. Aliás, Miguel (César Bordón) muda sutil e gradativamente de estatuto, se encaminhando para ser uma vítima, não de gente maldosa que expõem verdades, mas das pressões exercidas em todos os que ali moram desde cedo. Nesse sentido, o traficante que fala espanhol serve como o personagem de Terence Stamp em Teorema (1968), de Pier Paolo Pasolini. Sim, pois a novidade de sua presença revela algo fundamental às angústias dos que moram nesse campo superficialmente idílico. No entanto, não se trata de afirmar a maldade natural de Irene, Jairo e Jean, mas de trazer à tona as lógicas que os levam a agir de determinadas maneiras. Irene é cativa de uma repressão sexual que se manifesta na maneira afoita com ela se arrumando para tentar seduzir o forasteiro; Jairo se torna mais imprudente no exercício do caso homossexual mantido às escondidas com o vizinho por quem é apaixonado; e o pequeno Jean também corre riscos para agradar a figura que representa o ideal paterno do qual sente falta. E os problemas de uns estão interligados aos dos demais.
Em seu primeiro longa-metragem como diretora, Carolina Markowicz é perspicaz ao mostrar essas sutis revoluções silenciosas que chacoalham as pessoas antes condenadas ao sofrimento em meio à pasmaceira. Sem desabonar as responsabilidades individuais, ela observa com especial atenção o meio ambiente que leva essa gente com suscetibilidades distintas a agirem de modo tantas vezes hediondo. A religiosidade, a pobreza, os preconceitos que orientam o dia a dia dessa comunidade provinciana e pouco afeita a mudanças entrecortam fundamentalmente a narrativa. Nela, o idílico da vivência campesina repetitiva é encarado como fina membrana que recobre verdades inconvenientes enfrentadas por poucos. Voltando ao ótimo trabalho do elenco, destaque ao trabalho de Maeve Jinkings. No começo, a atriz brasiliense que ficou marcada no cinema por conta de suas personagens nordestinas viscerais soa um pouco dura no papel da mineira retesada. Porém, aos poucos, sua concepção ganha substância e quando nos damos por conta ela já se afirmou como um catalisador fundamental (por sua ferocidade reativa) da abordagem diagnóstica desse drama. Rômulo Braga exibe sua competência habitual para viver homens que parecem represar um mundo de angústias dentro de si. E o pequeno Jean de Almeida Costa é uma jovem revelação com sua naturalidade e carisma. E tudo isso ganha enorme evidência por meio da direção segura de uma cineasta atenta às profundezas humanas e sociais.
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