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Sinopse

Contratado numa empresa de laticínios, Cristóvão tem dificuldades de adaptação por não se identificar com o lugar. Diante do preconceito das pessoas, ele vai se conectando gradativamente com a natureza que o circunda.

Crítica

O plano simbólico prevalece narrativamente em Casa de Antiguidades. Por exemplo, a observação de alguém transitando por uma fábrica de laticínios ganha ares de ficção científica pela forma como o cineasta João Paulo Miranda Maria constrói a cena. Cristóvão (Antônio Pitanga) é visto como um cosmonauta num cenário exageradamente branco. A intenção se torna ainda mais clara a seguir, ao ele ser tido gradativamente como alguém que não pertence àquele mundo sulista semelhante a um arremedo de Alemanha. O filme se passa numa pequena comunidade do interior de Santa Catarina, região marcada inexoravelmente pela colonização germânica. Tanto que a língua diariamente falada entre os nascidos por lá é justamente a do país europeu, o que provoca uma exclusão imediata desse goiano de nascimento que, a despeito de por lá viver há 20 anos, não entende o estrangeirismo. Praticamente tudo na trama é subserviente ao âmbito metafórico, da sintomática reunião com o chefe que comunica a redução do salário à tentativa do protagonista de se tornar algo paterno.

Casa de Antiguidades é profundamente político. A dissonância entre os Brasis existentes se apresenta de várias formas, mas inevitavelmente atravessa Cristóvão, homem negro cercado de uma branquitude opressora por todos os lados. E, de fato, ele é uma ilha, isolado dos demais, geralmente perambulando solitário. Efetivamente não pertence e não parece fazer qualquer esforço para mudar isso. A câmera de João Paulo Miranda Maria praticamente não cessa, estando quase sempre em movimento, alternando distanciamento e aproximação. Quando é preciso estreitar o foco para sair do amplo ao restrito, obviamente o zoom in (para frente) é a ferramenta utilizada. Nos instantes em que propõe uma contextualização contrária, ou seja, partindo do detalhe e abrindo paulatinamente o escopo da visão a fim de subsidiar o nosso envolvimento com a conjuntura maior, respectivamente se recorre ao zoom out (para trás). Embora os procedimentos funcionem bem para gerar uma tensão interna, o revezamento entre essas alternativas se dá numa dinâmica reiterativa.

Conhecido por ser um dos grandes nomes do cinema brasileiro, especialmente um dos corpos mais vibrantes do Cinema Novo, Antônio Pitanga aqui se distancia da inquietude contagiante do Calunga de A Grande Cidade (1966) ou da inconformidade do Firmino de Barravento (1962). Em Casa de Antiguidades ele representa um sujeito ensimesmado, de gestos contidos e falas bastante ocasionais. Em raros episódios, Cristóvão é levado a tomar atitudes cheias de intensidade, basicamente nas vezes em que encara as demonstrações de violência às quais é submetido, como quando meninos brincam de torturar o seu cachorro de estimação. João Paulo Miranda Maria escancara essa contraposição brutal entre a existência de um homem negro e os ranços da vizinhança potencialmente racista. Em dado episódio, o número 17 – entalhado sem autorização no interior da casa – é sinalizado como um indício da agressividade local. Vale lembrar que essa dezena era o número de Jair Bolsonaro na sua candidatura à presidência da república. Para os bons entendedores, um vislumbre basta.

O problema de Casa de Antiguidades nem é a deliberada falta de sutileza, mas o enaltecimento solene de sua simbologia. O comportamento de Cristóvão, bem como o dos personagens ao redor (poucos com espaço para exibir subjetividades, pois são a turba), é rigorosamente condicionado pela imposta e asfixiante necessidade de reverenciar o aspecto figurativo. João Paulo Miranda Maria cria um universo em que animais aparecem como vetores da exploração. A separatista comunidade sulista se desenvolve em torno da produção de laticínios, ou seja, abusando da natureza. Já o protagonista possuiu outro tipo de relação com bois e vacas, a partir deles contatando um ângulo nobre de sua ancestralidade. Não à toa, ele acaba trocando a bota de trabalho (sem personalidade) por um calçado que o reconecta com sua raiz boiadeira. O maior acerto nessa operação é mostrar que a tradição, inclusive a reverenciada, também tem características ruins, vide o machismo do personagem de Pitanga. Morte, preconceito e resistência colidem, ainda que engessadas pela abordagem.

Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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