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Sinopse

O império Gucci foi construído a partir de muitas brigas e desentendimentos em família. Maurizio aceita assumir os negócios por pressão do tio, mas depois se vira contra ele. Paolo, o filho com aspirações a estilista, é rejeitado pelos empresários, e todos temem a proximidade de Patrizia, esposa de Maurizio, que busca controle cada vez maior nas decisões da empresa. Quando a mulher é afastada do casamento e dos rumos da Gucci, ela planeja o assassinato do ex-marido.

Crítica

Em 2013, o diretor Ridley Scott reuniu um elenco de estrelas para um filme de ação sem ação. Em O Conselheiro do Crime, os personagens se sentavam à mesa e planejavam roubos mirabolantes, complexos esquemas de tráfico, traição de parceiros. No entanto, estes planos raramente se materializavam em tela. Tratava-se de um estranho suspense em terceira pessoa, movido por diálogos incansáveis. O resultado foi certa impressão de frieza na condução, e a dificuldade de imergir na história por parte do público, que rejeitou a extravagância do cineasta. Algo semelhante ocorre com Casa Gucci (2021), uma biografia do império Gucci que minimiza a moda, a gestão empresarial, e mesmo o famoso assassinato. Aqui, os personagens mencionam a empresa familiar sem que o espectador saiba se a marca se encontra em seu início, ou já constitui um ícone reconhecido mundialmente. Aldo (Al Pacino) fala sobre a importância de preservar os negócios, porém jamais o vemos negociando de fato. Maurizio (Adam Driver) é acusado de gastar em excesso, embora nunca o vejamos usufruindo de tamanha riqueza — certo dia, objetos de luxo simplesmente aparecem à porta. Esqueça o dia a dia com funcionários, pagamento, confecção de coleções, discussão de tendências, rivalidade com outras casas: nenhum personagem demonstra apreço pela moda, nem um plano específico para o futuro. Os escritórios luxuosos ficam vazios: ninguém aparenta trabalhar ali dentro.

Na falta de conflitos concretos, existem aqueles evocados pelos diálogos — e de fato, os personagens falam bastante. No entanto, para uma narrativa dependente de conversas para se desenvolver, é impressionante a falta de dinâmica, ou a incapacidade de construir personalidades através das falas. Becky Johnston e Roberto Bentivegna oferecem um roteiro fraco: primeiro, por apostar em frases de efeito que prejudicam o trabalho dos atores (“Nunca confunda merda com cioccolato. A aparência é semelhante, mas o gosto é muito diferente”; “Minha bexiga está transbordando, mas não tanto quanto a minha inspiração”). Além disso, há uma dificuldade em determinar o ponto de vista: inicialmente, a trama parece contada por Patrizia Reggiani (Lady Gaga), enquanto o marido Maurizio é visto em segunda pessoa. Depois, o roteiro esquece a esposa para se dedicar a ascensão deste. Os protagonistas são opacos: o herdeiro da fortuna Gucci é representado como um homem desprovido de ambições, excessivamente tímido, que se contenta em executar as estratégias determinadas por terceiros. O que deseja ao certo o advogado? Patrizia sublinha a importância da família, embora ignore a sua por completo quando se joga no império alheio. Em paralelo, de onde surge a adoração espontânea do tio pelo sobrinho? 

As cenas se atropelam, algo estranho para um filme com confortáveis 157 minutos para desenvolver a sua história. Mesmo assim, o roteiro precisa de um anônimo dizendo que “Gucci é uma farsa” durante um desfile para o espectador descobrir que a marca enfrenta dificuldades. Revelações de dívidas também surgem abruptamente. Nota-se a dificuldade de Scott em trabalhar com processos, ou seja, dilemas aprofundados ao longo do tempo. Pela estrutura nuclear, um personagem entra em cena, cumpre seu papel de instigador de conflitos e depois desaparece. Rodolfo (Jeremy Irons) soa fundamental na narrativa, mas quando some das imagens, não deixa traços, remorsos ou marcas nos familiares. Paolo (Jared Leto), o histriônico sobrinho estilista, surge a esmo, sem função real. Durante reuniões familiares ou jantares com vários personagens, o cineasta se revela indeciso quanto ao papel daqueles calados, sentados no sofá. Existe uma sensação de desconforto em relação ao tempo e ao espaço: embora as mansões luxuosas e lojas de grife sejam importantes à obra, passa-se pouco tempo nelas, e os personagens interagem raramente com os cenários, transformados em panos de fundo teatrais. Já os anos e meses se sucedem sem que o espectador perceba ao certo em que medida as brigas se acentuaram, e as consequências das mesmas na vida de Patrizia, Algo, Maurizio e outros. É preciso encontrar, ocasionalmente, a pequena filha do casal (ignorada pelos pais, aliás) para perceber alguma passagem de tempo.

Tamanha indefinição produz uma composição desigual do elenco. A indústria está sedenta para transformar Lady Gaga numa grande atriz, visando resgatar o prestígio e a popularidade de premiações fundamentais ao status quo. Ora, por mais esforçada que seja, a cantora está longe de apresentar dotes dramáticos excepcionais — algo compreensível, devido à falta de formação para tal. Cher e Barbra Streisand se tornaram exceções, com níveis impressionantes de trabalho cênico. Gaga tem melhorado, e apresenta aqui um desempenho superior àquele do mediano Nasce uma Estrela (2018). Entretanto, basta vê-la poucos minutos em cena ao lado de intérpretes experientes para perceber como é devorada pelos colegas — caso de Camille Cotin e Jeremy Irons. Por trás de quilos de enchimento e maquiagem, Jared Leto investe em mais uma de suas transformações-performances, afetadíssimas em trejeitos e tiques. Ele aparenta habitar um projeto diferente dos colegas, no caso, uma comédia próxima do pastelão. O cineasta teima em dosar o humor no projeto que se pretende leve, e prefere ridicularizar figuras coadjuvantes (a cartomante interpretada por Salma Hayek) a deixar que o absurdo provenha dos próprios conflitos. A sequência do sapato raro, envolvendo Al Pacino, e aquela do álbum da filha entregue pela esposa abandonada deveriam ser fortes, mas apenas incomodam pela indefinição de tom e propósito: deveriam ser ridículas e cômicas, ou piedosas e dramáticas? Adam Driver, interpretando um herói à revelia, fica perdido entre a inocência inicial e a guinada inverossímil rumo ao empresário ganancioso. O filme se move aos solavancos.

Os sotaques representam outro ponto de discordância. Jared Leto oferece um italiano caricatural, Lady Gaga privilegia a entonação à pronúncia, e Adam Driver sequer se esforça para aparentar italiano. Scott nunca se importou em convocar atores locais para encarnar suas exóticas figuras de estrangeiros, e esta biografia não será a exceção. Casa Gucci se ressente de uma produção frouxa, onde cada ator ou membro da equipe desempenha seu papel de modo independente, em frágil comunicação com os demais. A fotografia aposta numa quantidade de bruma e gelo seco digna de filmes de terror; a direção de arte hesita entre o realismo (roupas e objetos de Maurizio e Aldo) e o paródico (os cabelos de Pina, a maquiagem cadavérica de Rodolfo). Algumas cenas passam ao preto e branco no final do conflito; outras são elaboradas com uma câmera tremidíssima por razão desconhecida, e a trilha sonora ora se faz discreta, ora, invasiva. Às vezes, a música desperta a impressão de que o tom foi forçadamente modificado na pós-produção (o passeio de barco entre os amantes). Há diversos méritos pontuais, incluindo a abordagem da marca Gucci sem endeuzá-la, nem atacá-la, e a capacidade de encontrar na assassina um misto de aproveitadora, mulher rancorosa e vítima de um esquema machista. Existem nuances preciosas no que diz respeito ao crime, reservado aos instantes finais. No entanto, o espectador sairá da longa sessão sem conhecer a ascensão da marca, o dia a dia dessas pessoas e o impacto da morte. Afinal, o que pretendia o diretor através dessa biografia isenta de posicionamento?

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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