Crítica
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Crítica
Especialmente nos últimos 10 anos, o cinema feito no Rio Grande do Sul tem gerado filmes com reflexões sobre a vida campesina na atualidade. Longe da idealização do gaudério que doma o meio ambiente selvagem paramentado de bombacha e chapéu, eles refletem sobre a continuidade da própria identidade do gaúcho. Obras como o longa-metragem Rifle (2014) e o curta Sesmaria (2015) encaram como tema as dificuldades de permanência em espaços antes propícios, respectivamente, à pecuária e a fruticultura em pequenas propriedades. O avanço dos latifúndios e a pouca atratividade à permanência dos jovens nessas regiões decreta a sua reconfiguração, a quase impossibilidade da continuidade da figura humana em paisagens cada vez mais monocromáticas pela existência das enormes monoculturas. Casa Vazia é outro exemplo dessa inquietação então agora renovada, pois o protagonista Raul (Hugo Nogueira) é morador de uma estância encravada no Pampa – bioma também conhecido como Campos do Sul ou Campos Sulinos –, mas está longe de ser um próspero fazendeiro com hectares a perder de vista. Ele faz parte da parcela significativa de peões pobres, dos homens e das mulheres a quem 50 pilas fazem diferença enorme no orçamento. Desempregado, Raul acorda num dia e simplesmente constata que a esposa e as duas filhas não mais estão por ali. Começa uma jornada que tem dupla função: ser um retrato dessa ruína pessoal e revelar os aspectos vitais do entorno.
Casa Vazia é inequivocamente um faroeste contemplativo que se passa no sul do Brasil. Seu personagem principal poderia ser um homem do Velho Oeste norte-americano, daqueles atravessados brutalmente pela obsolescência imposta, pela sensação de que seu tempo acabou. Mas ele é um sintoma do Brasil atual. O famigerado progresso que tornou cowboys e pistoleiros ultrapassados nos Estados Unidos, fazendo deles quase figuras primitivas num território então pautado por novos códigos, aqui transforma esse homem do campo brasileiro num subproduto do hoje excludente. Raul é um homem de pouquíssimas palavras e silêncios dolorosos, a quem vemos mais fitando o horizonte com olhar perdido do que expressando verbalmente o que sente ou deixa de sentir. E o cineasta Giovani Borba evoca minuciosamente essa sensação de angústia represada ao atrelar visualmente a melancolia do sujeito às “novidades” que o cercam. Cada lugar em que Raul estaciona brevemente para perguntar sobre a família desaparecida é uma oportunidade para adicionar elementos à história contada com um senso de economia instigante. Não são precisos arroubos emocionais, reprimendas ostensivas e desabafos ruidosos para compreendermos o que se passa na cabeça de alguém que caminha em direção aos seus sem muita esperança ou vigor. É como se ele se sentisse na obrigação de procurar, mesmo sabendo que não vai encontrar. Mas nem essa ação o faz se sentir assim tão vivo.
Tudo isso é sugerido pela encenação meticulosa de Giovani Borba. O jovem cineasta utiliza muito bem os não atores – incluindo o protagonista Hugo Nogueira – para criar uma convivência realista entre os personagens que habitam os campos próximos à fronteira com o Uruguai. As expressões mais costumeiras, os códigos de conduta impressos no cotidiano pela tradição, os programas possíveis para aliviar o tédio, as relações de trabalho e de afeto que ainda florescem nesses campos. São elementos que enxertam realidade em Casa Vazia, também reproduzidos pelos profissionais como Nelson Diniz. As pessoas falam pouco, falam baixo, seja para expressar condolências num velório ou para demonstrar o quanto estão intimamente frustradas com tudo por ali. Em sua primeira experiência no cinema, Hugo apresenta uma performance impressionante como esse homem que tem uma dificuldade enorme de colocar para fora tudo o que comprime seu peito. Ele é um exemplo tácito desse gaúcho pobre que anda de bombacha e chinelo “campeando” uma função que lhe permita sustentar e manter a família. No entanto, o filme não é sobre essa intenção, até porque Raul parece, novamente, procurar emprego como se isso fosse algo protocolar, o gesto imediato que se espera dele. A atividade como ladrão de gado entra em outro lugar, aí sim no da ação como forma de se sentir vivo. E o filme constrói essas noções, muitas delas por meio basicamente da insinuação, bastante atento à sensibilidade.
As andanças de Raul revelam a crise da imagem simbólica do gaúcho mencionada no parágrafo inicial deste texto. O desemprego é fruto da profunda transformação no cenário campesino do Rio Grande do Sul. Se antes esses espaços eram recheados de pequenas e médias propriedades familiares agrárias/pecuárias, nas quais era possível cultivar estilos de vida e honrar o encanto das tradições, agora eles formam uma paisagem latifundiária. Giovani Borba estabelece bem esse contexto por meio das sutilezas e de imagens cuja beleza é desconcertante. Se antes as qualidades esperadas de um homem do campo eram disposição, bravura, energia e conhecimentos específicos na lida com o gado e as plantações, agora ele precisa saber como pilotar uma colheitadeira. Portanto, nada aos velhos “cowboys”. As perambulações do protagonista de Casa Vazia desnudam a nova configuração do lugar em que foi forjada a figura mítica do gaúcho, vide o dourado a perder de vista da monocultura da soja, uma moldura opressora ao sujeito de bicicleta. É como se o presente fosse uma guarnição tirânica que determina o futuro dessa gente considerada ultrapassada e descartável. A brigada de “seguranças” do pecuarista local e a tensão com os ladrões de gado também serve ao diagnóstico desse mundo novo que nada tem de admirável às pessoas que praticamente perdem seu ambiente e ali permanecem definhando aos poucos em tristeza e saudosismo. Não à toa a ambiguidade da casa é tão importante. Por um lado, é o local de aconchego, o lar propriamente dito. Por outro, é uma âncora pesada que prende ao passado.
Filme visto durante o 23º Festival do Rio, em dezembro de 2021.
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