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Sinopse

Depois de começar a competir no concorrido mundo da lucha libre mexicana, Saúl tem receios de externar quem é por medo de preconceitos. No entanto, ele acaba assumindo a identidade de Cassandro, um competidor gay.

Crítica

A lucha libre é uma verdadeira instituição cultural do México. Guardadas as devidas proporções e diferenças entre esporte e entretenimento, para muitas crianças mexicanas a modalidade desperta fascínio semelhante àquele exercido pelos futebolistas em meninos e meninas brasileiros. O espetáculo está entranhado no imaginário da sociedade mexicana como algo que define certos aspectos de sua constituição. Cassandro é a cinebiografia de um lutador famoso e singular. Saúl (Gael García Bernal) cresceu admirando os homens e as mulheres mascarados que faziam piruetas no ringue e sustentavam uma aura mítica. Morador da fronteira entre México e Estados Unidos na vida adulta, ele vive com a mãe, Yocasta (Perla De La Rosa), e se apresenta como um lutador fraco, aquele que dentro do imaginário da lucha libre serve apenas para perder e com isso aumentar o cartaz dos colegas adorados pelo público. No entanto, um dia ele resolve trocar de papel e se transformar num exótico – como são chamados os lutadores com características femininas que, consequentemente, quebram um pouco da monotonia da paisagem que exala estereótipos de masculinidade. Curiosamente, os exóticos tradicionalmente não utilizam máscaras, ou seja, não cobrem seus rostos e se revelam para o público geralmente hostil. Saúl se liberta justamente ao se assumir um dos exóticos e adotar o codinome Cassandro.

O primeiro aspecto positivo de Cassandro é Gael García Bernal, produtor e protagonista da cinebiografia. Transitando habilmente entre a fragilidade emocional de um rapaz ressentido da ausência paterna e a garra necessária para sobressair num meio em que o machismo é cultivado como princípio, o ator mexicano novamente se destaca por seu repertório vasto. Há instantes em que ele segura a emoção prestes a derramar pelos olhos desse personagem fascinante, noutras transborda coragem dentro de uma perspectiva que flerta a todo o momento com a ideia do “modelo motivacional”.  Outro ponto a ser destacado positivamente é a decisão de fazer um recorte da vida do personagem, não incorrendo no clichê das cinebiografias que cobrem desde a infância até o sucesso. Mesmo que alguns flashbacks forneçam o contexto da meninice de Cassandro, somos poupados de acompanhar, por exemplo, as dificuldades da adolescência dele. Como jovem pobre, assumido homossexual aos 15 anos, imigrante mexicano nos Estados Unidos, podemos imaginar os percalços pelos quais ele e sua mãe passaram. Pensando nisso, há uma cena breve em que o protagonista informa a mãe da presença de imigrantes ilegais próximos à casa. Provavelmente se lembrando das dificuldades assim sugeridas sutilmente, ela pede que o filho ofereça aos compatriotas comida e água. As sutilezas tornam a história melhor.

Porém, nem tudo são flores em Cassandro. Em meio à construção da notoriedade que transforma o ilustre desconhecido Saúl no famoso e exuberante Cassandro, certos coadjuvantes são mal aproveitados. O roteiro assinado por David Teague e Roger Ross Williams (este também o diretor do filme), por exemplo, não valoriza a presença de Sabrina (Roberta Colindrez), treinadora do protagonista, amiga de todas as horas e pessoa fundamental para o nascimento do personagem Cassandro como uma figura que exibe orgulhosamente a sua orientação sexual no ringue. Em vários momentos da trama ela simplesmente desaparece, voltando à cena esporadicamente como suporte emocional praticamente desprovido de subjetividade. Quase o mesmo acontece com Gerardo (Raúl Castillo), o amante de Cassandro que precisa encontrá-lo em segredo para não criar turbulências em seu casamento heterossexual. Esse envolvimento do protagonista com o sujeito que não assume publicamente o seu desejo por homens existe somente como forma de sinalizar a repetição da experiência da mãe. Sim, pois Cassandro é fruto de um relacionamento amoroso que nunca foi concretizado em casamento porque seu pai (ausente) já era casado e tinha outra família. Então, Gerardo é estritamente a figura que enfatiza a identificação entre Cassandro e a mãe ao ponto de ele inconscientemente a reprisar no amor.

Portanto, é uma pena que, no fim das contas, Cassandro seja uma cinebiografia convencional sobre um personagem nada convencional. O elenco está ótimo, a trama contempla um retrato satisfatório (ainda que bem superficial) desse mundo machista das lutas peitado pela presença exuberante de Cassandro nos ringues, a conexão entre mãe e filho é bonita, mas falta ao filme aquele “a mais” que evitaria a sensação predominante de mais do mesmo. Em vários momentos da trama Cassandro parece estar em perigo, em parte porque o diretor Roger Ross Williams insinua que a presença de amigos viciados em drogas e de empresários pode significar empecilhos no caminho do protagonista rumo à fama. No entanto, trata-se de uma criação de expectativa frustrada, justamente pela falta de maior ênfase nos obstáculos. Claro que o fato de termos um protagonista pobre e homossexual numa realidade machista/capitalista, por si só, configura contratempos enormes. Isso está subentendido. Mas, falta à produção uma atenção menos ligeira a tudo o que dificultou a vida do menino que cresceu admirando a mãe e cultivando o amor pela lucha libre, fascínio adquirido na companhia do pai religioso, provedor de duas famílias, que o visitava na infância – antes de Cassandro se assumir homossexual. No mais, as cenas de luta são boas, muito por conta de Gael García Bernal parecer à vontade nelas.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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