Crítica
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Sinopse
Maria Tugira Cardoso se considera uma "catadora de gente". Há 30 anos dedica sua vida a catação de lixo. Através de depoimentos, expõe ideias sobre a vida, aponta os preconceitos que enfrenta e sua dura trajetória, como tantas outras catadoras no país. Tugira narra sua história e propõe uma reflexão sobre as desigualdades sociais do Brasil.
Crítica
Na estrutura narrativa aparente simples de Catadora de Gente, bem como na sua duração reduzida (menos de 18 minutos), cabem muitas entradas a reflexões profundas sobre a complexidade do desigual tecido social brasileiro. É um documentário focado nas vivências de Maria Tugira da Silva Cardoso, atualmente coordenadora da Associação de Catadores e Catadoras Amigos da Natureza, de Uruguaiana, no Rio Grande do Sul. E essa existência é permeada por diversas nódoas que definem problemas absolutamente enraizados em nossa coletividade, aqui trazidos à tona pela fala intensa da protagonista fotografada diante de um fundo integralmente escuro, mas que não denota neutralidade, aliás, pelo contrário. A cineasta Mirela Kruel dispõe com habilidade as colocações pujantes da mulher cuja história sofrida infelizmente rima com tantas outras.
Tugira menciona a discriminação sofrida quando trabalhava de babá para uma família de descendentes de italianos e alemães. Era cotidianamente comparada a cachorros e corvos, numa língua por ela desconhecida, de modo torpemente cifrado. A ciência do significado daquela menção preconceituosa a permitiu indignar-se. Aliás, Mirela pontua, por meio do encadeamento dos depoimentos, a importância do conhecimento para que populações marginalizadas consigam, ao menos, ter ferramentas suficientes para lutar contra um sistema que as exclui. Tugira diz que o contato constante com os livros descartados no lixão em que ela e o falecido marido labutavam lhe forneceu esses instrumentos para, primeiro, ganhar cultura, e, segundo, compreender seus direitos, inclusive como trabalhadora, experiência que está na base de sua atuação como líder de uma classe.
Aproveitando a fala de Tugira sobre a similaridade das histórias da gente que garante sua subsistência do lixão, Mirela entremeia os dizeres com encenações de cunho poético, como a do toque suave numa caixinha de músicas em formato de máquina de costura, gesto que talvez forneça uma preciosa chave ao passado com alguém caro da família. Conjecturas à parte, tais momentos permitem a expansão dessa sensibilidade voltada à compreensão dos infortúnios dos menos abastados. A própria homogeneização das trajetórias é trazida sutilmente à tona como outro sintoma da brutalidade de classe. Tugira fala da naturalização das violências, como o descarte de um recém-nascido, assim como da perpetuação de uma lógica em que a sobra dos mais validos se transforma na “fartura” de quem não tem opções ao trabalho desgastante para garantir o pão.
Catadora de Gente extrai sua incisão da forma terna, mas doída em seu âmago, desprendida do entrelace engenhoso das palavras de Maria Tugira da Silva Cardoso. A protagonista fala do embrutecimento como efeito colateral da extrema pobreza em que se encontra(va). Segundo ela, antes era totalmente incapaz de distribuir carinho, especialmente por conta da necessidade de mirar, antes de qualquer coisa, o sustento diário. Também é imputado à consciência (num sentido totalmente amplo) a possibilidade de baixar a guarda e entender que viver também passa pela troca de afetos. Tugira cita o coronelismo – bastante presente na fronteira em que ela mora – e a cultura conservadora que asfixia, sobretudo, pessoas com poucas oportunidades. Nesse belo filme, a mensagem, poderosa e importante, que permanece é a da essência do saber à verdadeira transformação.
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