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Sinopse

Todo ano, uma tribo de gatos chamada Jellicles precisa tomar uma grande decisão em uma noite especial: escolher um dos gatos para ascender para o Heaviside Layer e conseguir uma nova e melhor vida. Cada um dos gatos conta a sua história para sua líder, a velha Deuteronomy, na tentativa de ser o escolhido.

Crítica

Desde que divulgou seu primeiro trailer, surpreendendo o espectador pela caracterização antropomórfica dos gatos, Cats ostenta uma ambição singular: apresentar uma tecnologia jamais vista, transformando o famoso musical da Broadway numa experiência realista e, presume-se, mais imersiva ao espectador. Este é um projeto vaidoso do diretor Tom Hooper, cujo currículo repleto de prêmios da indústria (Oscar, Globo de Ouro etc.) o levou a buscar uma forma de espetáculo superlativa, ainda mais colorida, mais frenética, mais impressionante. É neste aspecto que a adaptação cinematográfica queima suas asas, ao abandonar o humanismo presente na base da peça de teatro para se focar na retórica do show, nas músicas em si, nos cenários, nas luzes, nos pêlos colados digitalmente ao corpo de grandes astros de Hollywood. O filme embala um conteúdo magérrimo numa caixa gigantesca e lustrosa.

O projeto possui dificuldades em quesitos muito simples, como contar sua história. Passada mais de metade da narrativa, ainda é difícil compreender quem é cada personagem, que papel executa naquela narrativa, o que deseja, e que maneira se relaciona com os demais. Informações importantes são despejadas na trama sem explicações prévias: um gato será escolhido para ganhar uma nova vida, mas por quê? Seria o espaço das ruas de Londres uma espécie de purgatório? Como a escolha dos Jellicle Cats se relaciona com as sete vidas destes animais? De que maneira a Old Deuteronomy (Judi Dench) foi encarregada de fazer esta escolha, e com quais critérios? Diante destas indefinições, nossa protagonista Victoria (Francesca Hayward) apenas transita de cenário em cenário, de um número musical ao outro, sem dizer o que almeja, nem se relacionar de fato com outros gatos. Quando Grizabella (Jennifer Hudson) chora suas dores, é difícil se identificar com ela, por não conhecermos os motivos de tamanha solidão. Quando Gus, the Theater Cat (Ian McKellen) demonstra cansaço com a escolha de uma nova vida aos Jellicle Cats, ignoramos seu passado com este processo seletivo.

Para os fãs árduos do musical de Andrew Lloyd Weber, talvez todas essas questões estejam elucidadas a contento, e o filme funcione enquanto elemento de sustentação do material de origem. Para todos os demais, a narrativa se revela confusa, para não dizer incompreensível. Personagens aparecem e somem conforme convém à narrativa, e a única ideia de ritmo se encontra em introduzir um novo gato ao final de cada número musical. Quando se interrompe a cantoria e a dança, uma figura nova simplesmente surge naquele cenário e começa a cantar, por sua vez, uma canção que pouco faz avançar a narrativa. Os gatos se sucedem em performances para a impassível Victoria, de olhos bondosos e complexidade psicológica inexistente. Caso as letras fossem bastante claras em relação à apresentação dos gatos e suas vontades (a exemplo das músicas em Cabaret, 1972, ou Chicago, 2002), esta colagem apressada de música para música, praticamente sem diálogos entre os segmentos, encontraria uma justificaria.

Ora, a evolução se torna retórica, pois diversas esquetes não nos dizem nada sobre o contexto, sobre as vontades nem sobre os obstáculos enfrentados por cada um. O filme se limita à apresentação linear de números musicais quase desconexos, razão pela qual quando se atinge enfim a competição dos gatos, este momento não fornece qualquer transformação narrativa: afinal, tudo o que presenciávamos até então soava como uma longa audição artística dos bichos. A montagem também efetua escolhas estranhas ao fragmentar a famosa canção “Memory” em duas partes, ou esticar as cenas cômicas a ponto de perder qualquer efeito humorístico nas constrangedoras cenas envolvendo Rebel Wilson e James Corden.

Estas falhas decorrem de uma indefinição conceitual grave. Costuma-se associar os efeitos visuais a uma mera questão técnica, mas é enquanto vetores criativos que os efeitos de Cats decepcionam. Por um lado, a inserção computadoriza de pêlos nos atores humanos e a criação de gigantescos cenários reais em estúdio sugere a procura pelo realismo para ultrapassar a limitação cênica da peça de origem. Enquanto os gatos da Broadway seriam humanos claramente vestidos com fantasias, estes aqui pareceriam “reais”. Ora, ao mesmo tempo, este suposto realismo se insere numa extravagante fantasia kitsch, incluindo gatos mágicos, vilões que desaparecem no ar, baratinhas dançantes com rosto, e ratos igualmente humanizados se escondendo por baixo de uma cartola. A produção poderia assumir seu caráter infantil e lúdico, tratando esta magia enquanto metáfora para o estado de espírito dos personagens (vide Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas, 1980, ou mesmo animações como a franquia Frozen) ou então poderia rir de seus absurdos, adotando um distanciamento pelo humor (a exemplo das sagas cômicas Jumanji e Uma Aventura Lego).

Entretanto, Cats se leva a sério demais, como se de fato estivesse transmitindo algo muito profundo sobre o estado do mundo. A opressora caracterização digital pretende passar despercebida, como se fosse apenas um elemento de imersão. Ironicamente, provoca repulsão e estranheza, dificultando a empatia. O diretor Tom Hooper nunca sabe quando abraçar a magia ou mergulhar no realismo, quando suscitar reflexão ou emoção. Não se compreende ao certo porque alguns gatos andam em quatro patas, enquanto outros são bípedes; porque alguns usam roupas, enquanto outros ficam nus; porque a gata interpretada por Judi Dench utiliza um casaco de pêlos de gato (ela possui um casaco de sua própria pele?); porque cantam uma música sobre suas patas enquanto mexem os dedos. É estranhíssimo ver figuras humanas nuas, com seios e abdômens musculosos, porém sem mamilos nem genitais, assim como se estranha a representação de gatos com dedos nas mãos e nos pés, além de olhos, nariz e boca humanos. Na peça, criava-se uma metáfora singela para relacionar humanos e bichos. Aqui, busca-se fundir ambos numa deformação de ambas as espécies.

A maior ironia se encontra na cena de conclusão, quando Old Deuteronomy entoa uma canção sobre o fato de que agora tudo estaria claro para o espectador: “Você já conhece nossos nomes / Você não precisa de intérprete para compreender nossos personagens / Gatos são iguais a você”. Não, Judi Dench, não conhecemos quase nada sobre esses personagens – nem os nomes, tampouco de onde vêm, ou para onde vão. Não entendemos ao certo de que servem os suntuosos cenários reais que se limitam a panos de fundo diante das quais os gatos dançam, mas com as quais pouco interagem. Para completar a comédia (involuntária) de erros, alguns efeitos especiais soam inacabados, especialmente quando os gatos pulam em grandes distâncias, num movimento maquínico que transparece o voo de atores amarrados a fios. Somados às músicas fracas, à edição sonora embalada a vácuo (não há ruídos nessas ruas cenográficas, e todo o som parece inserido na pós-produção) e aos problemas de proporção dos personagens (seja dos gatos com os cenários, ou dos ratos com os gatos), o resultado é uma bagunça criativa que desperdiça grandes talentos. Este é um dos raros casos em que direção, produção, montagem e efeitos especiais conceberam filmes totalmente distintos, e na hora de reunirem as peças, criaram um monstro de Frankenstein.

Filme visto no Cinemark Tinseltown, em Jacksonville, Flórida.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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