Crítica
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Sinopse
Trabalhador que corta pacientemente a rocha vulcânica branca da singular paisagem peruana, um pai se depara com seu filho que faz parte de um mundo diferente, moderno, repleto de drones e outros equipamentos tecnológicos.
Crítica
A premissa de Céu Aberto é própria ao melodrama. Senão vejamos. Temos pai e filho distantes, com uma barreira quase intransponível entre eles. O pai corta pacientemente a rocha vulcânica branca que caracteriza uma paisagem de determinada localidade peruana. Por sua vez, o filho está empenhado em digitalizar uma igreja barroca, talvez para permitir que visitantes consigam transitar por seus corredores virtualmente. Entre eles há uma ausência, a da esposa/mãe falecida. Os sujeitos não conseguem se comunicar, até porque fazem parte de mundos antagônicos. De um lado, o trabalhador braçal que utiliza modos antiquíssimos de mineração, golpeando a matéria-prima incessantemente com ferramentas manuais, criando sulcos para repartir a rocha, transformando a paisagem sem máquinas pesadas ou explosivos. Do outro lado, o rapaz (não menos ensimesmado) que barganha com o vendedor um preço melhor para o computador gamer que lhe será muito útil na hora de renderizar imagens. É alguém que passa boa parte do tempo empoleirado numa escada retratando pedaços da edificação para depois os unir numa imagem, quiçá de tour 360 graus. Por mais que essa descrição reforce a possibilidade melodramática, Céu Aberto cria uma tensão entre forma e conteúdo por meio de sua mise en scène minimalista e das tomadas longas, duas das características fundamentais do slow cinema.
Egresso da videoarte, o cineasta Felipe Esparza Pérez propõe uma experiência desafiadora com Céu Aberto. Isso posto na primeira cena, a do plano-detalhe de uma talhadeira sendo golpeada e criando uma rachadura na rocha vulcânica branca. Afrontando a nossa ansiedade, o realizador propõe uma observação menos apressada, calcada na progressão lenta e contínua dos esforços laborais do sujeito. É um convite para desacelerar e absorver as coisas num ritmo bem menos convencional. A estratégia narrativa é evidente: primeiro, nos acostumar com esse andamento arrastado, com as imagens persistentes na telona, com os gestos mínimos dos personagens; segundo, começar a injetar nisso elementos que constituem propriamente uma trama, mas sem deixar de lado a abordagem estético-narrativa apresentada até ali. O pai é observado bem mais como indivíduo rotineiro e solitário, capaz de ficar horas martelando o minério tão importante à economia local, mais tarde se aconchegando em sua casa humilde e fazendo carinho em seu gato. As cenas com o filho não são menos silenciosas e repetitivas, vide as várias vezes em que vemos ele fotografando a igreja, sentado diante de seu computador, recorrendo aos mesmos expedientes num cotidiano orientado pelo marasmo. Fica implícito que, mesmo integrando realidades distintas e não conseguindo se comunicar, eles são mais parecidos do que gostariam.
Aos poucos, Céu Aberto vai lançando mão de itens de simbologia religiosa. Um homem anda pela pedreira carregando uma cruz de madeira; a pichação na rocha fala do inferno; a própria digitalização da igreja; implicitamente também estão ali a culpa e a negação do pai como figura de autoridade. Isso nos permite pensar numa espécie de purgatório emoldurando os personagens principais, homens fundamentalmente atrelados aos seus tempos e que não conseguem sequer abrir a guarda para acolher as dores do outro. Dito assim pode parecer que o longa se transforma num grande melodrama familiar com o passar do tempo. Não é verdade. Felipe Esparza Pérez continua sempre muito fiel à essa encenação minimalista de planos longos, em que aparentemente nada de tão importante está acontecendo. No entanto, ele pontua algumas questões referentes a essa dificuldade de comunicação que acomodam as questões melodramáticas dentro da perspectiva do cinema experimental – ou de inclinação radicalmente menos comercial, por assim dizer. Assim como o pai corta a rocha para transformá-la em blocos e o filho decupa a igreja em fotografias para as juntar posteriormente e formar a imagem total, somos convocados a colecionar as fagulhas dessa situação familiar e criar menos um painel, mais um mosaico repleto de peças assimétricas coladas com o intuito de chegar à percepção do todo.
As escolhas estético-narrativas de Felipe Esparza Pérez são arriscadas – o que é louvável num panorama como o do audiovisual atual, em que fórmulas são utilizadas como garantia. Céu Aberto tem planos às vezes reiterativos demais e nem sempre a contemplação apresenta algo de provocativo, o que tende a afastar os espectadores menos persistentes. No entanto, é interessante a forma como o realizador encaixa o melodrama no slow cinema, duas instâncias aparentemente inconciliáveis, para contar essa história que também contempla texturas, choques geracionais observados nas entrelinhas e ainda um pingo de reflexão histórica. Sim, pois a rocha branca vulcânica foi extensamente extraída do Peru pelos colonizadores europeus, especialmente por conta de sua natureza rígida e de versátil utilização. Quando a guia esclarece isso aos turistas, nos dá margem para viajar nas relações entre os trabalhos do pai e do filho, pois a igreja retratada pelo mais jovem (e a casa do pai) é também feita exatamente com esse minério. Outra coisa instigante é a alternância da tradição (a mineração feita artesanalmente) e a modernidade, vide os momentos em que renderizações tomam a telona e quebram o fluxo de imagens do trabalho rústico do pai. Aliás, a viagem pela digitalização inacabada da igreja é um dos trechos propícios às elucubrações, pois aparece como símbolo da relação passado/futuro.
Filme visto no 33º Cine Ceará, em novembro de 2023.
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