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No livro Vozes De Tchernóbil: A História Oral do Desastre Nuclear, a escritora bielorussa Svetlana Alexijevich optou pela polifonia, ou seja, por ouvir várias vozes. Assim, cada capítulo da sua obra impactante contém relatos de alguém drasticamente afetado pelo acidente ocorrido em 1986 no reator quatro da Usina Nuclear de Chernobil, instalação que fica nas proximidades da cidade ucraniana de Prypyat – então pertencente à extinta União Soviética. Há histórias dramáticas de bombeiros acionados tão logo a usina entrou em grave combustão; de familiares dos que rapidamente foram consumidos pela radiação; de soldados convocados a atuar na linha de frente contra um inimigo invisível; de voluntários que sabiam da natureza mortal das suas missões; bem como de exterminadores de animais contaminados. E essa amplitude faz da pluralidade uma primazia. Já em Chernobyl: O Filme o cineasta Danila Kozlovskiy prefere concentrar as ações em torno do personagem fictício que ele próprio interpreta: o bombeiro bonitão prestes a se mudar dali depois de ter reencontrado uma paixão antiga e descoberto a paternidade. Os primeiros 30 minutos do longa-metragem apresentam esses momentos em que o sujeito revê Olga (Oksana Akinshina), logo tentando a todo o custo reavivar uma chama apagada anos atrás. A câmera se detém nos detalhes, nos pequenos gestos e meneios que denunciam as hesitações, os desejos mal camuflados e tudo o que permeia essa reaproximação após um longo distanciamento.
O filme começa anunciando que os personagens e as situações são fictícias, embora situados numa circunstância histórica factual. Portanto, em vez de escolher uma das inúmeras tramas verídicas decorrentes do desastre atômico, o roteiro de Elena Ivanova e Aleksey Kazakov utiliza a catástrofe de Chernobyl como pano de fundo à demonstração do heroísmo alimentado pela redescoberta do amor. E esse romantismo exacerbado é sentido insistentemente. Aliás, em vários momentos fica difícil saber se o foco principal é o relacionamento ressignificado pela tragédia ou se a intimidade do personagem principal ficará em segundo plano diante da imponência/urgência dos eventos históricos. E Chernobyl: O Filme permanece indeciso entre os dois mundos. Assim, nem bem é um estudo sobre a valentia do homem que redescobre o amor em meio ao desespero e tampouco um thriller pelos bastidores das decisões tomadas diante da explosão do reator. Da realidade, o longa-metragem tira alguns eventos que atualmente são bem conhecidos, tais como a necessidade de drenar a água sob a usina para que os rejeitos derretidos em contato com ela não ocasionassem uma explosão geotérmica capaz de dizimar a Europa. Nesse sentido, também são mostradas (de relance) as articulações militares, o deslocamento de pacientes a outros países e a utilização de condenados em missões camicases.
Mas, lembre-se, já identificamos que o filme quer tornar fundamental o heroísmo do bombeiro Alexey (Danila Kozlovskiy). E o realizador/protagonista não mede esforços para atingir esse objetivo, nem que seja necessário afrontar a realidade e pedir que o espectador faça ouvido de mercador, vista grossa e abandone as descrenças. Sim, pois o bombeiro é um dos primeiros homens na usina depois da explosão do reator, chegando a caminhar pelo teto da instalação com níveis insuportáveis de radiação incandescendo os céus e derretendo o grafite e o betume da superfície. Chernobyl: O Filme mostra Alexey chafurdando nesse composto mortal para salvar um amigo que estava largado à morte no lugar tóxico. E, diferentemente dos colegas imediatamente afetados pela radiação, ele tem apenas sintomas leves e logo é colocado novamente em contato com a mulher amada e o filho para exercer a sua nobre bravura. Mais à frente, é escolhido para ser um dos mergulhadores encarregados de abrir as comportas e assim escoar a água subterrânea para evitar a explosão geotérmica. Ou seja, o segundo contato mortal, agora submergindo em níveis ainda mais grotescos de contaminação. E ele sente apenas tonturas, mas sai sem grandes sequelas da experiência, tanto que se prontifica à definitiva incursão pelo local. Há um exagero na resistência física do homem, um subterfúgio que serve somente para ele consertar as coisas.
Lançado no Brasil com dublagem em inglês – algo sem qualquer fundamento, pois então mesmo a versão legendada não traz a língua original – Chernobyl: O Filme apresenta tonalidades diferentes. Nos mencionados primeiros 30 minutos detidos no reencontro amoroso, o filme carrega uma aura esperançosa. E essa noção é acentuada pelas cores quentes e a valorização dos sentimentos que permanecem vivos entre Alexey e Olga. Depois da explosão, a produção ensaia ser orientada visualmente por particularidades do episódio, vide a câmera na mão que passa a ser predominante e o foco ajustável de acordo com a ação/movimentação dos atores num cenário convincente de agonia. No entanto, a indecisão entre observar um herói dentro da tragédia e enxergar a tragédia a partir dos feitos do herói exageradamente resistente ditam o ritmo xoxo da experiência morna. É como se estivéssemos assistindo a um espetáculo ambientado numa guerra mundial, com um valor de produção considerável, mas que insistisse em elogiar a capacidade sobre-humana de alguém que descobre um propósito maior na vida (a proteção dos entes queridos). Para isso, essa dramatização somente pega emprestados da realidade os fatos e as desculpas para gestos extremos de coragem. Danila Kozlovskiy até esboça uma crítica à União Soviética – vide o par de vezes em que cita a precariedade da construção da usina e a hipocrisia dos chefes do partido –, mas nada que reforce um contorno político. Nem ao menos se pode dizer que estamos diante de um manifesto ufanista calcado no elogio do homem soviético, pois tudo é concentrado em Alexey e na sua jornada de sacrifícios em prol do outro, aliás, como cabe aos mártires.
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