Sinopse
Quando a violência na cidade de Chicago, nos Estados Unidos, atinge níveis insuportáveis, as mulheres decidem tomar uma atitude drástica: fazer uma greve de sexo até que os homens concordem em apaziguar e baixar armas.
Crítica
O diretor Spike Lee foi beber na fonte inesgotável da tradição grega, mais precisamente na peça Lysistrata, escrita por Aristófanes em 411 a.C., para criar um grande drama musical sobre a violência e a exclusão do povo negro. As estatísticas de mortes em Chicago são projetadas no início do filme, num comparativo com as baixas dos soldados norte-americanos em conflitos recentes, como na ocupação do Iraque. Nessa realidade estilizada, a cidade é chamada de Chi-Raq, justamente um neologismo que visa chamar a atenção para o estado de guerra civil que se vê nos subúrbios dominados por gangues, decorrente, principalmente, da rixa entre Espartanos e Troianos, contenda atual, urbana, mas que ganha contornos épicos e ancestrais em virtude da maneira como Lee desenvolve a narrativa de Chi-Raq. Dolmedes (Samuel L. Jackson) é o mestre de cerimônias, aquele que se dirige à câmera demolindo sem cerimônias a quarta parede, criticando os comportamentos como sintomas da perversidade do Estado, poder “impotente”, não por conta das dificuldades, mas da mal disfarçada negligência cotidiana.
O líder dos Espartanos, chamado Chi-Raq (Nick Cannon), é um fruto dessa histórica segregação racial e social, tornado gângster, um involuntário agente dos poderes instituídos que ajuda a dizimar a própria gente. Spike Lee faz dele um rapper, homem que vive da poesia musical emergente da dor, muito embora não se dê conta da triste função que ele mesmo desempenha contra as pessoas que sofrem ao seu redor. Num entorno em que o masculino parece dar as cartas, é justamente uma mulher, Lysistrata (Teyonah Parris), que começa o movimento inusitado, cujo objetivo é dar um fim à selvageria que deixa um rastro de aleijados e mortos. Ela convoca uma greve de sexo, tentando convencer as demais, por meio de um discurso firme, de que a restrição do prazer pode vir a colocar algum juízo na cabeça dos cônjuges, eles que amedrontam e atiram para pretensamente conseguir respeito. Chi-Raq é um filme militante em favor das chamadas minorias, pois mostra, ao mesmo tempo, a voz dos guetos e o poder do feminino, esta força da natureza capaz de refrear impulsos de morte.
Spike Lee se vale de uma linguagem muito moderna para fazer de Chi-Raq um êxito pleno, tanto no âmbito estético quanto no que tange às diversas mensagens expostas. Da origem grega ele preserva a rima, os diálogos que, além de cumprirem seu papel mais óbvio, promovem uma poderosa identificação entre os habitantes da antiguidade e os que hoje padecem à margem. Na tela pululam elementos gráficos que se referem a instrumentos atuais, tais como a comunicação via celular. Extrapolando a mera curiosidade, em determinada cena o diretor Lee utiliza as mensagens de texto como projéteis que anunciam midiaticamente a tragédia cotidiana, num recurso de expressividade ímpar. Outro dado a se notar é a utilização precisa de elementos da cultura pop, como, por exemplo, a coreografia por meio da qual a bela e extremamente sensual Lysistrata, à frente de seu exército de amotinadas, transmite o recado principal, numa alusão proposital e evidente à cantora Beyoncé Knowles. Ela diz “sem paz, sem buceta”, bordão afirmativo que rapidamente reverbera por diversas partes do globo.
Chi-Raq é um libelo pela paz, filme em que a consciência social transborda em cada frame, na engenhosidade de um itinerário que não nega o espetáculo do cinema, sua falsidade visível, pelo contrário, utilizando-a para potencializar aquilo que defende como imprescindível. Há momentos convidativos às lágrimas, como o sermão incisivo e emocionante do pastor interpretado por John Cusack, que prega a igualdade em frente ao caixão branco de mais uma vítima infantil da brutalidade deflagrada nas ruas. Repleto de swing e voluptuosidade, o longa-metragem de Lee ainda guarda alguns trunfos, como o bandido vivido num misto de sátira e ironia por Wesley Snipes, líder dos Troianos, cujo tapa-olho evoca a figura do mitológico ciclope. O protagonismo da mulher é um sintoma da busca incansável de Spike Lee, diretor que utiliza habilmente o cinema para expor injustiças histórias e propor caminhos a fim de repará-las ou, ao menos, de amenizá-las. Nesse tocante, esta sua nova realização atinge resultados como poucas recentes, colocando-se no panteão das obras-primas, sem dúvida.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Marcelo Müller | 10 |
Chico Fireman | 8 |
Lorenna Montenegro | 8 |
MÉDIA | 8.7 |
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