float(21) float(5) float(4.2)

Crítica


6

Leitores


5 votos 8.4

Onde Assistir

Sinopse

O congolês Chico Rei, também conhecido como Galanga, foi trazido para o Brasil em 1740. Primeiro, comprou a própria liberdade. Segundo, foi responsável pela alforria de vários conhecidos.

Crítica

O documentário Chico Rei Entre Nós (2020) é exibido num momento específico da história brasileira. Trata-se da época em que a desinformação domina a guerra político-ideológica, tornando socialmente aceitáveis falas absurdas de governantes eleitos sobre os negros terem se entregue de bom grado à escravidão, ou sobre a inexistência de uma ditadura militar no país. Fatos confundem-se propositadamente com suposições e boatos, razão pela qual o projeto dirigido por Joyce Prado insere-se numa disputa de narrativas. Se a história do povo negro foi apagada pelos brancos, ela se torna ainda mais ameaçada face às ressignificações delirantes da extrema-direita. O filme deseja resgatar uma ideia importante: a noção de que a trajetória do povo negro, sobretudo no Ciclo do Ouro em Minas Gerais, repercutiu além do sofrimento e da exploração do corpo. Os escravos trouxeram consigo uma rica cultura, além de conhecimentos especializados e um ideal de luta e coletividade que formaram a identidade brasileira. A história de pessoas negras é contada pelo ponto de vista dos próprios negros, como raras vezes ocorre nos estudos acadêmicos e também no cinema.

Na impossibilidade de contar com representações do ícone congolês do século XVIII, visto que os registros das conquistas negras foram voluntariamente suprimidos, a cineasta aposta em entrevistas. O recurso quase exclusivo das conversas possui prós e contras. Por um lado, permite que diversos conhecedores da história de Minas Gerais e Rio de Janeiro sejam escutados, funcionando como ponte de conhecimento entre gerações (jovens negros discorrem a respeito da trajetória de heróis e reis negros do passado). Em especial, a escolha permite que Chico Rei se torne um conceito maior do que os esforços de um único homem. Através da despersonalização, o protagonista invisível se converte numa bandeira de luta em nome do direito à moradia, à autonomia das minorias, à redistribuição de renda. “Todas essas pessoas são Chico Rei”, ressalta um entrevistado rumo ao final. Prado se descola da obrigação de enumerar fatos específicos ao assumir o personagem enquanto mitologia cuja importância ultrapassa o período específico em que viveu. Através dos relatos, cada espectador é convidado a imaginar seu próprio líder revolucionário, projetando-o nos homens e mulheres contemporâneos.

Por outro lado, a ausência de material de arquivo e de recursos poéticos (restritos aos registros literais de bandas tocando, ou de um ativista cantando) limita a estrutura do documentário. A direção depende excessivamente da fala de seus personagens, despertando a impressão de que nenhuma imagem é tão importante quanto o som. A autora toma a precaução de dissociar a banda sonora das captações, sobrepondo o som das conversas às imagens de estátuas e outros ícones religiosos, o que promove certo dinamismo. No entanto, ressente-se a falta de outras investigações formais. A captação transparece tamanhas restrições que depoimentos mais extensos optam por cortes de um enquadramento para o mesmo enquadramento, o que transparece a falta de alternativas e chama mais atenção para a costura das falas do que para o conteúdo das mesmas. Os simples focos de luz projetados sobre entrevistados possuem eficiência moderada, em especial para um filme diurno com forte potencial de exploração da luz natural. Outros instantes remetem a deslizes que normalmente seriam retirados do corte final, a exemplo do refletor amarelado que se acende no plano na igreja, desligando-se um segundo depois. As opções buscam a funcionalidade, ainda que esbarrem em escolhas artificiais, a exemplo dos quatro amigos espremidos de um lado da mesa de bar para que a câmera possa filmá-los de frente. A direção hesita entre explorar o naturalismo enquanto tal e reordená-lo da maneira mais conveniente.

O caráter didático produz certo incômodo. Ao abordar um conteúdo que se supõe desconhecido pelo interlocutor, Prado encarrega-se da responsabilidade de apresentar antes de analisar. Por isso, o discurso formatado dos guias turísticos contamina o roteiro. Explicam-se as datas, os principais movimentos de reação dos escravos, a construção das igrejas, o papel das religiões. O caráter de show and tell, típico de guias de passeio ou de museus, é reproduzido sem grande subversão pela diretora ávida para escutar o que estes jovens homens tiverem a dizer, no estilo que desejarem. Chico Rei Entre Nós assemelha-se a uma aula, mesmo que seja agradável de olhar e acompanhar. Em paralelo, remete a um material turístico de Minas Gerais, onde o espectador poderia acompanhar de perto toda a riqueza musical e histórica produzida pelo povo negro, e mencionada nos testemunhos. O possível vínculo utilitarista (visando atrair pessoas para a visita à cidade) dilui o foco atemporal da luta política, embora obviamente não o invalide. O resultado se torna mais potente quando registra uma ocupação urbana do que nos retratos das belezas pitorescas da cidade mineira.

Ao menos, a cineasta consegue efetuar de maneira orgânica a expansão do discurso, partindo do protagonista para uma reivindicação ampla a respeito da luta e cultura negras. Ao longo de apenas 95 minutos, abordam-se temas diversos, bem conectados pela montagem e articulados enquanto parte de um único discurso. Arte e política tornam-se indissociáveis, tanto no gesto da equipe quanto nos relatos evocados pelas entrevistas. O discurso também possui o mérito de viajar entre Minas Gerais e São Paulo (e depois, de volta a Ouro Preto) com facilidade, sem recorrer a letreiros ou capítulos fragmentados. O fato de este não ser um projeto “sobre Chico Rei”, mas sobre a força mobilizada por iniciativas como a dele, constitui um dos principais méritos da obra. Entretanto, a ambição do debate não é acompanhada pela estética, ou seja, o trabalho de conteúdo demonstra cuidado superior àquele da forma. De modo geral, o documentário introduz ao cenário audiovisual brasileiro uma cineasta de talento, ousada em suas ambições histórico-políticas e capaz de alternar entre focos distintos com notável coesão.

Filme visto online na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2020.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *