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Sinopse

Navegando pelas águas da Patagônia, um membro da tripulação de uma embarcação descobre um portal mágico que leva ao apartamento de uma jovem em certa cidade latino-americana. Concomitantemente, um grupo de homens encontra uma cabana misteriosa nas Filipinas, o que acaba assustando os moradores.

Crítica

Esta curiosa experiência cinematográfica nasce da vontade de conjugar três espaços incompatíveis, e fisicamente distantes: um cruzeiro de luxo, um apartamento de classe média e uma comunidade indígena. A premissa tão singela quanto engenhosa de Chico Ventana Também Queria Ter Um Submarino consiste em imaginar uma porta comum que permita aos protagonistas transitar de um local ao outro. Esta descoberta poderia ser tratada com o senso de espetáculo digno das viagens no espaço-tempo, ou talvez com o gosto pelo absurdo da portinha que levava ao interior da cabeça de John Malkovich no filme de Spike Jonze. Ora, talvez a maior surpresa, neste caso, seja o fato de não haver surpresa alguma. Os personagens encaram o portal com certa curiosidade, e então o exploram sem alarde. Por serem solitários, não compartilham o fato com ninguém. Logo o tímido funcionário do cruzeiro pode adentrar a casa de uma mulher igualmente tímida, como se fosse uma nova oferta de local vazio para perambular quando desejado.

Para além do título prodigioso – que possui o mérito de ser instigante e fugir a tantas designações genéricas de obras recentes -, o projeto encanta por sua dupla construção, a priori contraditória: por um lado, trata-se de um filme simplíssimo, de aparência documental, com três personagens principais, poucas interações, raros diálogos, nenhuma descrição da psicologia do trio central nem de suas motivações ou ambições para o futuro. Por outro lado, a produção transparece o aspecto mágico da travessia secreta, inscrevendo-se dentro da ficção científica por ferir princípios científicos básicos, da aventura por possibilitar a jornada de exploração em pleno anonimato, e da magia lúdica, do tipo que jamais explica suas próprias regras. O trio se assemelha a um grupo de fantasmas, e talvez o seja: Chico Ventana (Daniel Quiroga) passa vários dias pela casa de Elsa (Inés Bortagaray), na presença dela, sem ser percebido; a mulher, por sua vez, caminha de pijamas num cruzeiro de luxo sem chamar a atenção dos demais passageiros; e Noli (Noli Tobol) consegue entrar numa cabana proibida e fortemente vigiada, sem que os outros o saibam. Talvez esta porta se abra apenas aos marginais, numa compensação tragicômica do destino.

Mesmo que pareça minimalista, Chico Ventana Também Queria Ter Um Submarino apresenta uma construção impecável de enquadramentos, fotografia e montagem. Ou seja, a simplicidade da narrativa não implica em descaso com a construção formal, tampouco reflete em qualquer forma de amadorismo. Cada imagem fixa é cuidadosamente pensada pelo diretor Alex Piperno. Em geral, existem diversos quadros dentro do quadro, com linhas (as colunas do navio, as linhas da montanha, as batentes da porta do apartamento) delimitando novos espaços, ao passo que profundidades distintas possibilitam novas ações e objetos em diferentes camadas da imagem. O uso das luzes sobre as escadas do navio, ou ainda das colunas espelhadas fornece possibilidades estéticas que o diretor e sua equipe exploram com uma precisão impressionante. Não parece nada fácil extrair beleza de um mínimo armário de banheira, de cor branca e restrito em espaço (como em qualquer armário de banheiro comum), no entanto o cineasta encontra meios de enquadrar este espaço de modo a dar volume e textura.

Talvez seja possível discorrer sobre as diferentes maneiras como as pessoas lidam com o acaso, seja pela curiosidade ou indiferença, ou então pelas relações de crime e castigo – Noli e seus amigos acreditam numa possível magia afetando o grupo caso entrem na cabana misteriosa. Seria Deus, o acaso, uma tentação? A porta constituiria uma caixa de Pandora, um reflexo dos desejos de cada um? Ora, talvez essas hipóteses forcem uma causalidade que nunca se encontra no filme. Piperno demonstra prazer em explorar os espaços e o tempo, e os faz muito bem dentro de uma produção perfeitamente adequada ao tamanho de seu projeto. A provocação das portas poderia ser reduzida ao caráter de brincadeira, no entanto, traduz-se em jogo conceitual, ao relembrar o potencial disruptivo de um simples corte de montagem. As viagens entre espaços distintos dialogam tanto com o subgênero da ficção científica quanto com as trucagens analógicas dos primórdios do cinema, quando Méliès retirava uma cadeira entre enquadramentos, por exemplo, para sugerir o sumiço do objeto. Chico Ventana Também Queria Ter Um Submarino retorna a este nível de manipulação poética, que escancara a si própria com notável senso de despreocupação.

Será interessante perceber o impacto de um filme tão discreto e tão provocador dentro do circuito comercial. Caso chegue de fato às salas de cinema, o que se espera de uma obra de tamanha qualidade, trará uma forma de pensamento cinematográfico que não corresponde à elegância típica do cinema “de arte”, tampouco se insere no cinema popular. Este é um filme uruguaio-argentino-brasileiro-holandês-filipino, que talvez transmita a identidade de todas essas nações, ou de nenhuma delas. Piperno consegue efetuar uma obra sobre o espaço-tempo sem se situar num espaço ou num tempo preciso. Ele combina classe operária, classe média e comunidades indígenas como raras produções ousariam fazer. Para efeitos práticos, tem sido descrito como “experimental” pelo festival de Berlim, embora sua experimentação seja narrativa, não formal. Através de meia dúzia de cortes cirúrgicos da montagem, Piperno, seus montadores e fotógrafos abalaram as referências cinematográficas do público e da imprensa, comprovando o potencial imenso das manipulações estéticas, de linguagem e de discurso no cinema.

Filme visto no 70º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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