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Sinopse

Depoimentos, imagens inéditas de acervos pessoais e arquivos diversos percorrem a trajetória de um dos mais importantes rockstars do Brasil. Desde os anos 1990, quando sua banda Charlie Brown Jr. lançou o primeiro álbum e despontou nas rádios, Chorão viveu décadas intensas de sucesso nacional e internacional, repletas de polêmicas, até a morte precoce, por overdose, em 2013.

Crítica

É compreensível que os documentários biográficos sejam feitos por cineastas que admiram os indivíduos biografados. Diretores de filmes brasileiros passam muitos anos elaborando o roteiro, reunindo o dinheiro, preparando as filmagens, cuidando da pós-produção e batalhando para o resultado ser visto. Por isso, é natural que o artista se dedique a alguém com quem tenha afinidade artística, política, familiar etc. Em paralelo, raros são os casos como Michael Moore ou Dinesh D’Souza, dedicados quase exclusivamente a expor e atacar seus desafetos. Em Chorão: Marginal Alado (2019), nota-se com clareza o carinho do diretor Felipe Novaes por Chorão, antigo vocalista da banda Charlie Brown Jr. Percebe-se igualmente a precaução em preservar a imagem do protagonista, fugindo ao máximo de controvérsias pessoais e musicais, sobretudo em se tratando de uma personalidade falecida. Obviamente, o protagonista não pode falar por si mesmo no tempo presente, nem se defender das eventuais acusações de terceiros. Por isso, o cineasta decide construir uma obra unicamente elogiosa.

O documentário começa ressaltando as virtudes esperadas para um filme de fã: Chorão foi um grande músico, líder nato, compositor incansável, poeta à margem, vocalista inconfundível, revolucionário do rock, perfeccionista, humilde etc. A montagem privilegia as falas mais positivas a respeito do personagem, sobretudo aquelas de teor retórico. “Ele tinha uma luz própria”, “Ele pensava além”, “Ele era uma pessoa dócil, amiga, ajudava todo mundo”, “Ele tinha aquela mágica”, “Ele tinha approach” são algumas das dezenas de frases sucedendo-se como uma martelada de elogios intercambiáveis. O roteiro inclui farto material de arquivo de Chorão ensaiando, cantando e se apresentando. A cena em que aconselha uma fã sobre a necessidade de buscar seus sonhos é incluída na íntegra. Em contrapartida, as entrevistas do músico são raras, e pessoas fundamentais para este retrato tão pessoal, a exemplo da esposa e do filho, ganham espaço secundário em relação a produtores e agentes. Chorão se torna tema, jamais sujeito da narrativa. Embora já estivesse morto, poderia ser resgatado em suas contradições pessoais (algo que Cássia, 2014, fez muito bem). No entanto, Novaes opta por um retrato de terceiros em forma de elegia.

Até certo ponto, a obra constitui uma homenagem convencional. No entanto, Chorão: Marginal Alado enfrenta questionamentos éticos mais graves a partir do ponto em que vai além de louvar o cantor, passando a desculpá-lo por absolutamente todas as suas ações nocivas. Segundo a direção e a montagem, Chorão não era grosseiro, e sim “exigente” com a banda. Ele era acusado de ter temperamento difícil pelos colegas, porém na verdade “era polêmico, porque todo roqueiro é assim”, e porque tinha “muita energia negativa em cima do cara”. Ele não era agressivo, e sim “muito intenso”. “Ele é alfa demais, é o estilo dele”, sugere um entrevistado. Se passou a consumir drogas, o músico o fez porque estava cansado, porque era sensível demais, e porque trabalhava à noite, estando mais exposto a estas substâncias. Aos poucos, o filme se converte num documento para rebater acusações em contrário, a exemplo de um persistente advogado de defesa. O discurso preocupa-se então em desacreditar o adversário e semear a dúvida para transformar o réu em mártir, vítima e herói. Ele revolucionou a música, ajudou muitas pessoas, e sofreu porque se importava demais. A direção escolhe o modo como gostaria que Chorão fosse lembrado, e faz os contorcionismos necessários para sustentar esta tese.

Uma consequência da escolha pelo cinema enquanto produto ideológico de convencimento, ao invés de material para reflexão, se encontra na estética. Os enquadramentos, a captação e edição de som, a iluminação das entrevistas transmitem o cuidado mínimo para um trabalho profissional, mais interessado no que os amigos possam dizer do que na imagem de si próprios. Um empresário brilha e transpira sob a forte luz do refletor; outros conversam em ambientes pouco iluminados, ao passo que a montagem se apressa para fazer cortes internos e eliminar respirações, pausas e digressões. O ritmo teme os tempos mortos e a aparência de dúvida, razão pela qual os cortes bruscos transparecem convicção e chamam atenção à mão controladora por trás do dispositivo cinematográfico. As falas possuem liberdade de expressão até o momento em que devaneiam ou fogem do esperado, caso em que são abruptamente cortadas, dentro de um mesmo plano. Durante os shows, o volume aumenta exageradamente em relação às falas, para o espectador se sentir diante do verdadeiro cantor. Estes recursos tentam impressionar pela intensidade e pela insistência. Novaes é muito coerente em suas vontades, e no meio de atingir os efeitos desejados.

Talvez a ambiguidade moral em relação a Chorão se transmita mais claramente no que diz respeito às drogas. O artista faleceu em decorrência de uma overdose de cocaína, porém o termo “overdose” jamais aparece na trama. O roteiro evita ao máximo abordar o assunto, evocado discretamente nos últimos 15 minutos. As falas são constrangidas, citando a fase em que o cantor foi para um mau caminho, tomou decisões erradas, se excedeu, começou a tomar “aquelas coisas”... Inúmeros eufemismos são empregados para abordar as drogas sem abordá-las de fato, sempre fornecendo justificativas para seu consumo. Julgando pela estrutura da montagem, pode-se deduzir que ele teria começado a usar drogas e falecido logo em seguida, porque o tema nunca tinha sido mencionado antes. Em provável intuito de preservar Chorão, evitando estereotipá-lo pela relação com a cocaína, a direção a esconde ao máximo. Ora, esta escolha resulta numa abordagem pouco transparente, dentro de um filme-eufemismo, ou um filme-caricatura, no sentido em que as qualidades de Chorão são acentuadas, enquanto os defeitos são diminuídos, desculpados ou excluídos. O filme traça um panorama seletivo, enxergando o que deseja enxergar. Neste caso, a linguagem documental se torna menos uma abertura ao real do que uma possibilidade de idealizá-lo.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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