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Sinopse

Cidade; Campo, filme de Juliana Rojas, é composto por duas histórias, que têm como foco a migração entre cidade e campo. Numa delas, a trabalhadora rural Joana se muda para São Paulo depois do rompimento de uma barragem. Na outra, Flávia se muda com a sua companheira para a fazenda herdada de seu pai.

Crítica

Juliana Rojas tinhas dois filmes pela frente. E eles estão juntos em Cidade; Campo, segundo longa da sua filmografia solo (após outros dois co-dirigidos por Marco Dutra). Portanto, como se percebe de imediato, a separação proposta no título não é ao acaso: ali se encontra por um motivo, não apenas como respiro, mas o suficiente para propor uma tênue ligação. De um lado, aquela que abandona o interior rumo à capital. Do outro, o movimento inverso, de quem busca longe dos grandes centros uma tranquilidade difícil de ser encontrada. Tanto é que nem uma, nem as outras, irão se deparar de imediato com aquilo que haviam imaginado antes. A surpresa, assim como a decepção, andarão de mãos dadas. Assim, o conjunto justifica a aproximação, oferecendo uma oportunidade de análise que encontra reflexo não apenas na formação do Brasil enquanto país, mas também, como forma de contrapartida, mantendo um olho atento aos contextos contemporâneos, nos quais a sustentabilidade se mostra cada vez mais como único caminho possível frente ao caos criado pelo próprio homem.

Joana (Fernanda Vianna, integrante do conceituado Grupo Galpão de teatro e vencedora do kikito de melhor atriz no Festival de Gramado por O Que Se Move, 2012, drama dirigido por Caetano Gotardo, que por sua vez foi montador de Trabalhar Cansa, 2011, trabalho de estreia de Rojas) não está ali por sua vontade. Mas é o que lhe restou. O momento, portanto, é de recomeço. Tudo que tinha foi devastado. Perdeu-se em meio às aguas e ao barro de uma tragédia nacional. A diretora, também roteirista, se expõe através de um exercício de ficção, mas sua mira está apontada para o concreto, para o real vivido ao seu redor. Em 2015, o barragem de Mariana, em Minas Gerais, se rompeu e inundou tudo o que estava diante de si, levando – e lavando – as vidas e os sonhos de inúmeros. Entre estes estava Joana, que se sobreviveu, também não é mais quem sempre se imaginou. Nessa obrigação de se reinventar, partiu em busca de quem pudesse lhe oferecer o apoio necessário para tanto. A irmã que se mudou anos antes lhe abre as portas, mas ambas sabem ser este um acolhimento temporário. É preciso fazer por si. E está na criança o olhar desprovido de cacoetes que talvez lhe aponte o caminho a ser seguido.

Flávia (Mirella Façanha, vista em Samantha!, 2019) perdeu o pai há pouco. Ele, que sempre lhe serviu como base e esteio moral, deixou nela um vazio que nem mesmo a garota imaginava ser possível – até pelos dois estarem afastados há algum tempo. Depois da morte da mãe, muitos anos antes, para a filha se tornou impossível continuar no pequeno ranchinho da família. Os que ficaram, então, cresceram e amadureceram cada um a seu modo, e por mais que tentassem manter contato por ligações e videochamadas, eram hoje pessoas que mal se conheciam. Essa dívida a impulsiona a fazer o movimento contrário àquele que, no fim da adolescência, a levou embora: é chegada a hora de voltar. Dessa vez com a namorada como companhia, Flavia retorna para tomar posse daquilo que julga ser seu, e nesse processo, fazer também uma tentativa de se reconectar com o homem que não mais está lá. Na morte, ela busca uma ligação perdida. Mas o período em que esteve ausente não foi pouco, e há um preço a ser pago por tamanho afastamento. Afinal, nenhum espaço fica vago de forma indefinida. Sempre haverá alguém disposto a ocupá-lo. Nesse ou em outro plano.

No centro da trama de Cidade; Campo, portanto, não estão exatamente estes cenários apontados pelo título, mas os corpos que transitam de um para o outro, e vice-e-versa. Se no século passado a advento da industrialização motivou um abandono em massa dos povos interioranos em busca de melhores condições de sobrevivência nas atrativas metrópoles, e antes disso os imigrantes europeus que aqui chegavam buscavam era nas terras ainda não ocupadas possibilidades de cultivo e prosperidade, a contemporaneidade não permite mais apontar apenas para uma ou outra direção. Há os que vão de lá para cá, os que se movem no sentido contrário, e muitos outros ocupando vazios deixados tanto num, quanto noutro. Joana e Flávia, enfim, são exemplos atuais que não apenas contradizem a lógica de ontem, como também servem para análise e reflexão diante de um amanhã cada vez mais difícil de ser previsto e, frente ao qual, não há mais como se preparar. Aquelas que ao redor delas se posicionam, do sobrinho curioso frente ao desconhecido à companheira disposta a uma aventura sem saber ao certo no que estava se envolvendo, cada um a seu modo colabora nesse desenho impuro e impreciso, mas reflexo de uma realidade da qual não se pode mais evitar.

Juliana Rojas havia trabalhado em suas obras anteriores com elementos sobrenaturais, e o mesmo se verifica por aqui. Mas em Cidade; Campo esses surgem quase como comentários em paralelo, reforçando uma ideia há muito sedimentada por um cotidiano de perdas e recomeços, no qual a força para seguir em diante vem mais da determinação em não se entregar do que da disposição em acumular conquistas. As mulheres do cinema de Rojas, cada vez mais na posição de protagonistas, até podem sentir pelos homens que partiram ou depositar esperança naqueles que ainda estão em formação. Mas não ficam chorando por suas ausências e nem se mostram dispostas e esperar de braços cruzados até que eles se acreditem prontos para essa luta. Estão elas na linha de frente, independente de onde esta batalha será cruzada. As distâncias diminuíram e os limites que separam um extremo do outro estão cada vez mais difusos. Há, no entanto, ainda a necessidade de um ponto e vírgula separando um do outro. Um alívio segundos antes do pulo. Hoje ainda condicional, mas rumo a um amanhã que se mostrará imprescindível.

Filme visto durante o 74o Festival Internacional de Cinema de Berlim, na Alemanha, em fevereiro de 2024

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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