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Crítica


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Sinopse

Um Brasil pulsante e radicalmente coletivo. O processo de um espetáculo feito do transbordamento de urgências cotidianas, contradições, alegrias, delírios, feridas e potências. A arte que traz o mar ao palco, à cidade e à telona.

Crítica

Sem dúvida, o processo da criação é um espaço amplo e riquíssimo à pesquisa. Em Cidade Correria, a cineasta Juliana Vicente observa os vários meandros da montagem da peça que dá nome ao filme, levada a cabo pelo Coletivo Bonobando. Para isso, estabelece uma separação clara em camadas que se interpenetram constantemente: a primeira é a investigação das etapas do fazer artístico, por meio dos testemunhos coletados; a segunda, o vislumbre de trechos do espetáculo montado. A soma disso é a constatação do quão potente é a utilização da experiência cotidiana como motriz/substrato daquilo que se vê no palco. Ainda que incorra numa repetição pouco produtiva à discussão da linguagem desse jogo em curso, o filme consegue lançar luz sobre alguns temas que acabam pedindo passagem em meio à provocação do espectador para enxergar um grupo de pessoas que fazem parte de recortes frequentemente marginalizados da sociedade. Às vezes, essa evasão para falar de assuntos como preconceito racial, dificuldades da população pobre e excluída, segregação urbana violenta de acordo com classe social e etnia, entre outras urgências debatidas, causa um desvio que solapa o discurso a respeito do processo. Mas, em certos instantes, há uma organicidade maior nesse composto.

Há vários transbordamentos em Cidade Correria. Os personagens entornam para a câmera suas consciências sociais, fazendo coro até chegar, coletivamente, à constatação de que é preciso saber ouvir e colaborar para gerar união. No entanto, Juliana Vicente não parece essencialmente atenta a determinados ganchos que as conversas fornecem, preferindo seguir um itinerário mais direto e, frequentemente, próximo ao didático. Isso, tendo em vista como ela dispõe os excertos da peça montada, geralmente enquanto comentários ilustrativos do que os intérpretes acabaram de dizer. Por exemplo, uma participante do Coletivo Bonobando fala, claramente segurando a emoção, como lhe toca particularmente o recorte infantil da vida periférica. Imediatamente depois, a cineasta mostra essa mesma atriz encenando (vestida com um pijama) a ludicidade das brincadeiras atravessadas pela agressividade cotidiana da bandidagem e da polícia numa cidade convulsionada como o Rio de Janeiro. Há um privilégio à explicação, à confirmação de que a realidade foi preponderante à construção de cada personagem que expressa indignação, vulnerabilidade e resiliência no transfigurado palco italiano.

A insistência na ilustração tira um pouco da força dramática do saldo teatral, pois o reduz à função de nota de rodapé. Juliana Vicente parece indecisa entre assinalar a realidade, estreitar o foco em exemplos repletos de especificidades ou valorizar a beleza da eficácia da arte como elemento expressivo e transformador. De toda forma, Cidade Correria consegue oferecer aos personagens/atores um espaço privilegiado para falar de suas vivências, no qual externam as dúvidas como seres criadores e os contratempos pessoais, como uma dura levada da polícia apenas pelo fato de ser negro ou a brutalidade de conversar sobre balas perdidas com crianças que deveriam se ocupar de brincar e se desenvolver. Curiosamente, a diretora da peça não se pronuncia, é vista de relance nos raros instantes em que Juliana se volta para uma análise visual dos ensaios. Estes são essencialmente evocados pelas palavras, trazidos para a delineação um tanto caótica por meio dos testemunhos, ou seja, da pujança do verbo. Pena que diante de possibilidades tão instigantes para entender a bifurcação realidade/representação se transformando numa convergência potente, o elucidar prevaleça.

Cidade Correria tem como trunfo a sensibilidade diante das pessoas. Mesmo em dificuldade para consolidar um eixo, deixando um tanto gratuita a troca de lentes e ainda que não mergulhe nas complexidades do processo lindo de elaboração coletivo, Juliana Vicente tem a habilidade de nos permitir enxergar. A visibilidade do projeto, do Bonobando e, sobretudo, das especificidades da gente que fornece suas vivências como amostras, é o ponto positivo que acaba contrapesando as fragilidades conceituais e de execução. O equilíbrio entre os depoimentos é comprometido pelo encantamento da direção com algumas peculiaridades, tais como a consciência de pertencimento a grupos forjados pelos integrantes (Guetes e Pobres Soberbos), em detrimento de potencialidades que surgem em cena somente como complemento, mas que tinham cacife para aumentar a abrangência do conjunto. Atores olham ao passado – meninice, começo no teatro, ensaios, estreia –, mas são os letreiros finais que nos fornecem o presente como uma rubrica de persistência. O filme é bem mais um elogio a esses homens e mulheres que fazem da vida combustível da arte do que discussão sobre linguagem, possibilidade fermentada, bastante tangenciada pela cineasta, mas que não chega a sobressair.

Filme visto online na 7ª Mostra de Cinema de Gostoso.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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