Crítica
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Sinopse
Um acidente de carro na estrada Mulholland Drive, em Los Angeles, dá início a uma complexa trama que envolve diversos personagens. Rita escapa da colisão, mas perde a memória e sai do local rastejando para se esconder em um edifício residencial. É nesse mesmo prédio que vai morar Betty, uma aspirante a atriz recém-chegada à cidade que conhece Rita e tenta ajudar a nova amiga a descobrir sua identidade. Em outra parte da cidade, o cineasta Adam Kesher, após ser espancado pelo amante da esposa, é roubado pelos sinistros irmãos Castigliane.
Crítica
Muitos consideram uma sala de cinema apenas um lugar físico, material, onde, mediante o pagamento de um ingresso, pode-se sentar por cerca de duas horas para assistir a uma produção hollywoodiana qualquer. É apenas isso, just entertainment! E quem pensa assim não está errado, pois é esse tipo de pessoa que possibilita que tais filmes sejam feitos, contribuindo nas bilheterias de todo o mundo atrás de suas doses regulares de escapismo fantástico. São os blockbusters, que levam milhares aos cinemas, arrecadando muitas vezes mais do que o seu custo total, e com isso viabilizando outros projetos – menores, mais experimentais. Esses, por sua vez, são direcionados a um tipo diferente de público, mais seletivo, perceptivo, que não recusa um convite ao desafio. Para esses, existem os “movies”, mais do que apenas “films”. Um bom exemplo disso é Cidade dos Sonhos, que rendeu ao diretor David Lynch o prêmio de Melhor Direção no Festival de Cannes e uma indicação ao Oscar nessa mesma categoria. Não há como sair indiferente diante dessa obra perturbadora, propositalmente confusa e original acima de tudo.
Perplexidade e estranhamento são sentimentos comuns entre sua audiência. Mas, por quê? A resposta é simples. Numa época em que ficamos maravilhados com passatempos cada vez mais competentes, em que tudo vem mastigado, explicado e explícito na tela para não restar dúvida sobre o que está sendo contado, Lynch aposta completamente numa corrente contrária. Ele também coloca em cena as pistas necessárias, mas de modo aleatório, confuso e perturbado. Sai-se da sessão sem entender o que aconteceu não porque o realizador foi inteligente e a plateia incapaz de entendê-lo. A sensação de desorientação vem da exigência aqui imposta de raciocinar a respeito do que está sendo exposto. Está tudo lá, mas disposto como num grande quebra-cabeça. Para fazer sentido, é preciso juntar as peças.
Uma garota do interior, Betty, vai para Los Angeles, meca do cinema mundial, tentar a carreira de atriz. Para isso, conta com a ajuda de uma tia, veterana de sucesso no ramo da atuação, que enquanto viaja a trabalho promete emprestar sua casa para a sobrinha. Ao chegar, encontra no apartamento uma desconhecida, Rita, vítima de um acidente de trânsito que afirma ter perdido a memória. As duas, juntas, tentarão desvendar o passado dessa mulher misteriosa. Enquanto isso, no outro lado da cidade, um diretor de cinema é pressionado pela máfia local a aceitar uma atriz novata, Camilla Rhodes, como protagonista de seu próximo projeto. Com sua recusa, tudo começa a dar errado em sua vida, sendo inclusive abandonado pela mulher, que o troca pelo limpador da piscina.
Acima foi descrita a trama 1 de Cidade dos Sonhos. Mas não acaba aí, pois ainda exista a trama 2. Diane é uma pobre garota, que junta os poucos trocados que ganhou como herança de uma tia e vai tentar a sorte em Hollywood. Lá, em sua primeira grande chance, perde a oportunidade para Camilla, uma profissional mais gabaritada. As duas, no entanto, se tornam amigas e amantes, com Camilla arrumando papeis de coadjuvantes para Diane nas produções que estrela. A relação entre as duas logo começa a se transformar em obsessão, o que piora quando a estrela decide abandonar a ex-namorada e anuncia seu casamento com o cineasta responsável por seu último projeto. As consequências desse episódio serão trágicas para todos os envolvidos.
E o que uma história tem a ver com a outra? Esse é o charme de Cidade dos Sonhos, ou, no título original, Mulholland Drive (a estrada onde acontece o acidente com Rita, no início da história, e que serve também como um excelente mirante para toda a região onde a trama se desenvolve). Descobrir os pontos em comum entre os dois enredos é um convite ao raciocínio, uma proposta respeitosa e inteligente que David Lynch faz ao seu público. O diretor não menospreza a capacidade intelectual do espectador, incitando-o a ir adiante, construindo o seu próprio filme e estabelecendo por si as conexões entre as diversas possibilidades apresentadas, sem estabelecer nada de forma definitiva. Por outro lado, tudo estão bem exposto, mas para que isso seja percebido é preciso atenção, e, acima de tudo, um esforço intelectual acima da média do que geralmente Hollywood exige.
Cidade dos Sonhos é, indiscutivelmente, um dos mais belos e originais filmes deste século. Elaborado num primeiro momento como um piloto de uma série de televisão, foi transformado em cinema posteriormente e logo ganhou status cult, o que só vem crescendo com o passar dos ano. Além disso, conta uma interpretação complexa e estonteante de Naomi Watts, até então uma desconhecida que por esta atuação foi escolhida como Melhor Atriz do ano pela Sociedade Nacional dos Críticos de Cinema dos EUA. Ela consegue alternar da frágil e ingênua Betty para a rancorosa e vingativa Diane com extrema habilidade, revelando nuances discretas e marcantes, capazes de provocar arrepios no espectador mais atento. Essa sua estreia como protagonista foi um primeiro passo digno de estrela, talento esse que a década seguinte comprovou em mais de uma ocasião, porém em nenhuma dessas oportunidades posteriores com o mesmo vigor e entrega.
“Imagine um livro que, quando publicado, faz muito sucesso, deixando seus leitores intrigados e com muitas dúvidas, mas sem conseguir respondê-las, pois seu autor faleceu antes da primeira edição ser vendida”, propôs David Lynch certa vez ao comentar Cidade dos Sonhos. “É assim que vejo meu filme, como uma caixa cujo segredo está na chave de cada um, que irá abri-la e desvendá-la a seu modo”. Este é um desafio ousado e original, e o processo de criação é ainda mais estimulante e recompensador. Poucas vezes o cinema esteve tão próximo da arte, e a incógnita e o esforço em interpretá-la fazem parte deste processo. Afinal, seja no cinema ou no aconchego da hora de dormir, sonhar nunca foi tão satisfatório. E no mais... Silêncio!
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toda vez que assisto descubro alguma coisa. amo este filme. o resto é silencio