Crítica
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Sinopse
O nigeriano Amadi procura seu irmão, Ikenna, na cidade de São Paulo. Aos poucos percebe que o supostamente bem sucedido professor de matemática inventou para sua família uma narrativa imaginária de sua vida no Brasil. Amadi descobre lentamente a verdade em uma missão pelo submundo da cidade.
Crítica
Na primeira metade deste filme, o personagem principal está ausente das imagens. Ikenna (Chukwudi Iwuji), matemático nigeriano radicado em São Paulo, motiva as crises na família em Lagos e leva o irmão mais novo à sua procura pelo Brasil. Sem falar a língua local nem ter conhecimento sobre o paradeiro exato do irmão, Amadi (O.C. Ukeje) parte numa curiosa caça ao tesouro, abraçando cada pequeno indício da passagem de Ikenna por prédios e bares da capital paulista. Amadi, inicialmente, existe apenas para resgatar a história do irmão, sem possuir um passado nem uma subjetividade próprios. O grande mérito do drama se encontra na passagem de bastão, ao permitir que a empreitada fortaleça o irmão mais novo, conquistando seu espaço próprio ironicamente após seguir os caminhos percorridos pelo outro. Existe um componente muito clássico nesta premissa, típica jornada do herói enviado mundo afora e encarregado de retornar apenas quando encontrar o tesouro. No coração deste drama delicado existe uma aventura.
O diretor Matias Mariani e sua equipe possuem evidente cuidado ao retratarem a cultura africana no Brasil. Ao contrário do habitual olhar de exotismo, destinado a sublinhar diferenças e a descrever o outro por sua distância em relação a nós, o cineasta coloca brasileiros, nigerianos, congoleses, húngaros e asiáticos em pé de igualdade. Desenha-se uma cidade cosmopolita onde cada um fala sua língua ou seu sotaque, e mesmo sem se entenderem por completo, ainda produzem alguma forma de comunhão em nível essencialmente humano. Amadi é composto com delicadeza por O.C. Ukeje, ator que carrega curiosidade em cada olhar, enquanto menciona o irmão desaparecido com uma mistura de raiva e admiração – algo bastante justificável, como se compreenderá mais tarde. Os personagens brasileiros comunicam-se em tom de especial naturalidade, sem sublinhar as palavras nem articular as falas em excesso. Indira Nascimento, em particular, possui um despojamento exemplar nos diálogos, do tipo que faz falta a tantos filmes nacionais de pretensão naturalista.
Enquanto o conteúdo humano é retratado com cautela, os aspectos mais concretos da cidade permitem ao filme apostar numa estética ousada. Muitos diretores buscariam o scope para retratar a amplitude da paisagem urbana, porém Mariani prefere o formato 1.67:1, mais próximo do quadrado, para ressaltar as linhas, colunas e as curiosas formas geométricas dos prédios, ruas e viadutos. São Paulo é transformada num cenário de ficção científica, onde a presença opressora de concreto sobre os cidadãos consegue encontrar alguma forma de aceitação tácita de seus moradores. Ninguém reclama destes espaços bagunçados, caóticos, nem mesmo ao produzir uma música ao lado do barulhento Minhocão ou ao subir vários andares de uma ocupação precária. Aceita-se a cidade como ela é, o que de certo modo condiz com a postura de empatia do filme como um todo. Amadi e Ikenna jamais tentam ser “menos africanos” para se integrarem, enquanto os brasileiros não minimizam seus costumes para abraçarem os imigrantes e seus descendentes. Contra a noção de aculturação por meio do acúmulo de elementos distintos, desenha-se o valor da cultura dinâmica, fortalecida pelo contato com a diversidade, em especial no que diz respeito à trilha sonora.
Apesar de tamanha riqueza humana e de um ritmo bastante agradável, fruto de uma montagem que equilibra agilidade e contemplação, alguns elementos de roteiro enfraquecem o conjunto. A narrativa é marcada por conveniências destinadas a facilitar a vida de Amadi: numa das primeiras lojas que encontra, depara-se com o computador do irmão desaparecido, destravado e disponível para o acesso de documentos. Encontra-se uma senha de e-mail com facilidade espantosa, e um personagem fundamental para o irmão mais novo estará sentado algumas fileiras à sua frente durante a primeira ida ao jóquei. Para um filme tão interessado em discutir a aleatoriedade e as possibilidades de controle do mundo através da compreensão matemática – em cenas teóricas um tanto confusas dentro da estrutura do roteiro – Cidade Pássaro (2020) aproxima-se até demais da noção de destino. Caso trabalhasse ativamente com a dicotomia fé-razão, talvez este embate se justificasse melhor. No entanto, a busca é facilitada tantas vezes que nos permite acreditar em uma mão generosa do deus-diretor preocupado em cuidar de seu personagem e não lhe esticar desnecessariamente o sofrimento.
Esta benevolência se encontra inclusive no desfecho, talvez a parte mais surpreendente do projeto. Esperava-se alguma forma de embate entre Amadi e Ikenna, de ordem concreta ou simbólica. Pelo uso dos espaços e do tempo, o filme prepara o espectador para alguma saída poética, no entanto, a conclusão aposta em momentos abruptos, de montagem mais agressiva e tendência à espetacularização do conflito (vide o papel da porta verde, da guitarra, do lance de dados que nunca abolirá o acaso). Por mais que se resolva a contento o processo de emancipação do irmão mais novo, este recurso soa estranho dentro do ritmo do filme como um todo, e traz um aspecto novo sobre Ikenna que o roteiro não terá tempo de desenvolver. A bela ternura da cena da infância é trocada por um conflito mais frontal, e literal até demais para um projeto que lidava tão bem com fantasmas, desaparecimentos e projeções familiares. Mesmo assim, sobressai a ideia de pessoas que se retroalimentam da cidade, como se fossem profundamente condicionados por ela enquanto a modificam. As imagens labirínticas das fachadas de prédios e galerias constroem um imaginário fascinante sobre São Paulo, do tipo que não escapa à memória tão cedo.
Filme visto no 70º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2020.
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