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Sinopse

Raptada por um bilionário excêntrico, a escritora Loretta é obrigada a guiar o algoz até o tesouro da cidade perdida descrita no seu mais recente livro. Alan, o modelo que personifica o herói nas capas das publicações assinadas por Loretta, parte numa jornada para resgata-la.

Crítica

Há uma maneira de identificar em Cidade Perdida que os roteiristas criaram propositalmente baseados em clichês e chavões. Mais do que isso: Oren Uziel, Dana Fox, Adam Nee e Aaron Nee partem dessa consciência para revirar certas convenções da aventura de caça ao tesouro. Basta prestar atenção ao exagero presente em vários departamentos e à sacanagem com elementos esgotados em filmes anteriores. Está aí o princípio dessa comédia de ação que flerta com a sátira, mas sem jamais descambar totalmente a ela. Sua protagonista é Loretta (Sandra Bullock), escritora de romances populares que são caracterizados por toques eróticos. Quando a conhecemos, ela é uma mulher em luto e de saco cheio – das glórias, da repetição da rotina e da falta do que a motive a seguir. Durante o lançamento de sua mais nova publicação, Loretta é obrigada a vestir uma roupa espalhafatosa e tem episódios de constrangimento dignos de trupes humorísticas. A entrada em cena de Alan (Channing Tatum), modelo das capas de seus livros, reforça a importância do exagero como trunfo para brincar com esse tipo de produção. E assim será durante todo o longa-metragem dirigido por Aaron e Adam Nee. Cada personagem ou intenção carrega a noção do quão ridículos são certos lugares-comuns recorrentes em histórias como Tudo Por uma Esmeralda (1984). Então, o negócio é situar componentes e retorcê-los.

Há algumas falas que ajudam a confirmar essa consciência como um conceito fundamental de Cidade Perdida. Quando o maldoso vivido por Daniel Radcliffe diz “vamos ver do que se trata o plano do vilão”, num rompante de autorreferência, é como se o sujeito soubesse de antemão o que se espera dele, bem naquele instante. Na verdade, os roteiristas nos sugerem: "ele sabe o que deve fazer, pois é quase ciente de ser um personagem". Aliás, Abigail (Radcliffe) não poderia ser outra coisa senão um ricaço ressentido que deseja provar ao pai o seu valor, ou seja, um arquétipo visto inúmeras vezes como obstáculo para homens e mulheres heroicos. A sua saída triunfal, com direito a avião supersônico surgindo do nada, é outro forte indício do gosto pelo excesso. Logo à frente, quando Alan diz “então quer dizer que virei a mocinha em perigo”, é novamente um diálogo com essa tradição que serve de inspiração. Normalmente, em filmes de aventura ambientados na selva hostil (que abriga relíquias de povos subjugados), a mulher desempenha o papel de alguém que precisa ser salva/protegida. Ela frequentemente é a mocinha em perigo que fornece ao homem/macho a chance de mostrar o seu valor. Em Cidade Perdida há uma bem-vinda chacota com isso, algumas inversões interessantes e outros instantes de conservação do status quo. De toda forma, esse jogo narrativo evidencia que os realizadores estão dispostos a atualizar os termos da dinâmica entre os gêneros ao confrontar a herança.

O bonitão vivido por Channing Tatum parte realmente à floresta para resgatar a escritora aparentemente indefesa. Afinal de contas, isso é esperado de um personagem atlético como ele. No entanto, Alan é o grandalhão estabanado sem as qualidades para garantir o sucesso da missão na selva. Tanto que precisa da ajuda de um cara experiente, Jack Trainer (Brad Pitt), a personificação escrachada do protagonista dos livros da escritora – e, por conseguinte, aquele que Alan gostaria de ser. A diferença entre as habilidades de Jack e a inabilidade de Alan é tão gritante que entra também na conta do exagero mencionado como essencial ao calculado aspecto ridículo da trama. Pelo teor cômico, a cena deles carregando Loretta em câmera lenta num carrinho de mão enquanto são perseguidos por capangas é um dos momentos altos do filme. No entanto, nela também são demonstradas consciência e referência: tudo atrás os fujões explode, bem ao gosto das produções apelidadas de “exército de um homem só”. No fim das contas, Jack é a versão platinada e passageira do Rambo, o ultrapassado modelo que inspira Alan. Aaron e Adam Nee jogam com as expectativas masculinas de conquistar a mocinha ao provar-se capaz de salva-la. Isso tudo em meio a uma aventura com gosto refinado de comida requentada, salpicada com boas doses de ironia, sarcasmo e lucidez, o que lhe confere o seu sabor.

Em Cidade Perdida o absurdo não é equívoco e/ou falha, mas a sua razão de ser. Aaron e Adam Nee esticam algumas piadas mais do que deveriam e confiam demais na repetição de sacadas que dão certo apenas uma vez – como a frustração quanto aos veículos apropriados. A subtrama paralela da agente literária tentando encontrar a amiga poderia ser sacada do enredo sem com isso causar tantos prejuízos. Até mesmo a viuvez da personagem de Sandra Bullock é praticamente irrelevante. Para além dessas fragilidades, o filme não busca simplesmente surfar nas ondas de um filão popular dos anos 1980, mas entende-lo a partir de perspectivas atuais. Desse modo, a homenagem pressupõe a criação de mecanismos que reanimam algo fadado à nostalgia. Dentro disso, o par romântico é encabeçado por uma atriz 16 anos mais velha, logo inverte-se a tendência machista de escalar garotas como interesses amorosos de homens mais velhos; a gratuita cena de nudez não é feminina, como geralmente vemos, mas masculina (e esse é um gesto claramente proposital de contestação). Se como aventura escapista o longa-metragem já se sustenta bem, ele fica ainda melhor quando observado pelo prisma dessa subversão. Tentando classifica-lo para melhor entende-lo, podemos dizer que ele não cabe nos limites da sátira. Melhor defini-lo como uma meta-aventura. Para ser satírico, seu tom do humor deveria ser um pouco mais agudo e determinante. Ao chama-lo de aventura metalinguística, podemos situa-lo entre a ciência da tradição e o desejo manifestado de repensar padrões narrativos e lógicas de produção.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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