Crítica


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Sinopse

A versão musical da lenda que todos conhecemos. Cinderela é uma jovem que deseja ardorosamente sair da casa de sua madrasta perversa para abrir sua própria loja de vestidos. Em busca de independência, ela encontrará o amor.

Crítica

Não é verdade que os contos de fada nunca envelhecem. Embora tenham apelo praticamente universal, eles carregam várias estruturas e elementos que dizem respeito à época de suas criações. É comum que tudo gire em torno de um príncipe encantado em busca do amor; de donzelas esperando protetores galopando num cavalo branco; de sonhadores encontrando seu lugar no mundo. Portanto, faz sentido que tais histórias sejam redesenhadas de acordo com as mudanças sociais. Cinderela tem como fundamento apresentar alternativas contemporâneas à desgastada lenda da gata borralheira transformada em princesa por conta da magia da Fada Madrinha e do amor improvável. Estrelado pela cantora Camila Cabello, o novo candidato a sucesso musical é influenciado por certa grandiloquência/colorida própria da tradição Disney. Mesmo feito fora dos domínios da casa do Mickey, o filme reproduz procedimentos e componentes que remetem aos desenhos animados responsáveis por eternizar narrativas anteriores à existência do império de Walt Disney. Não foi o estúdio norte-americano que criou tais lendas, mas ele soube como nenhum outro se apropriar de suas potencialidades para, por exemplo, transformar princesas numa marca registrada. Aqui a assinatura é diferente, mas a abordagem é claramente semelhante/reverente, inclusive pela opção por um musical de contornos clássicos.

Cinderela já começa com uma voz enfatizando que tudo vai se passar num reino antiquado. O passeio inicial da câmera pela vila revela uma paisagem de cenários irrealistas, bem como uma bem-vinda diversidade humana. Entre os plebeus é possível distinguir homens, mulheres, pessoas brancas, negras e de fenótipos relativamente variados. Rapidamente se percebe que o conceito essencial é reler a trama consagrada e contada inúmeras vezes pelo viés progressista. A plebeia Cinderela (Camila Cabello) vive no porão da casa de sua madrasta. A primeira curiosidade perceptível é que as irmãs postiças não são mesquinhas, se colocando mais no papel de ingênuas (tolas?). A gata borralheira mora num cômodo amplo que em nada sugere desconforto, no máximo sendo rústico. Há um excesso de artificialismo nesse e em outros cenários que mais parecem desenhados para uma campanha publicitária, inclusive pelo efeito gerado. Num comercial disposto a vender algo, dificilmente alguém é submetido a emoções negativas. Não é muito diferente do que acontece por aqui. Mesmo quando Cinderela afirma estar sofrendo, preterida, sozinha e sem saída, a atmosfera saturada de cores e otimismo não deixa que tais sentimentos tenham alguma durabilidade A pegada postiça dominante sugere a felicidade. Já os números musicais embalados por canções pop/rock conhecidas são burocráticos e insossos.

É interessante ver uma superprodução interessada em revisar estatutos sociais vigentes, para isso se valendo do conto de fadas que, como mencionado, está abarrotado de noções restritivas, tais como o patriarcado onipotente. Aqui, Cinderela quer ter a própria loja; a princesa (segunda na linha sucessória) tem mais vocação do que o príncipe ao comando; a rainha demonstra desconforto pelo tamanho do ego do marido; a madrasta conta a história triste sobre como se tornou amarga por conta da asfixia de seus sonhos; há discussões sobre a necessidade de extrapolar as expectativas de papeis predeterminados. No quesito boa intenção, Cinderela é louvável. Mas, ser bem intencionado não é suficiente para garantir relevância cinematográfica e tampouco a potência desses discursos propositivos. Em vários momentos do longa-metragem, cresce a sensação de que, enquanto os enunciados reivindicam reconfigurações radicais naquela sociedade imperialista, o objetivo moderado é mudar as coisas para que elas permaneçam iguais. O paradoxo é melhor identificado no personagem do príncipe Robert (Nicholas Galitzine), sujeito que transita abruptamente do “riquinho mimado” para o “jovem tentando se desvencilhar dos grilhões da tradição”. Não há nuances na sua curva dramática que, como outras, é repleta de incongruências e inconsistências. Ele é somente um dos elos frágeis do filme, inclusive porque, no fim das contas, suas decisões permitem o desfecho que subverte (será?) os padrões.

A produção parece mirar um mundo novo, mas não tem coragem de estimular os caminhos a serem percorridos rumo às transformações. De longe, a melhor ideia colocada em prática é o Fado Madrinho vivido por Billy Porter, único negro com estatura para além do estereótipo da subalternidade. Embora o citado passeio inicial da câmera pelo reino sugira diversidade, homens e mulheres de pele retinta são transformados em paisagem, quando muito destacados como o arauto encarregado de dar um divertido tom de rap aos anúncios reais. As releituras de cenas clássicas do conto, como o baile em que a pretendente será escolhida, existem somente como estratégias para não perverter demais o original. Mesmo que anuncie a vontade de se empoderar, a protagonista cai de amores repentinamente; o príncipe não é convincente com seus supostos dramas internos (parecendo um pós-adolescente mimado contrariando o pai); a princesa fica entre a sagacidade e a abelhudice; e as tensões são dissipadas com uma noção de “basta querer”. Claro, o gênero contempla narrativas que tendem à idealização, à concretização de sonhos impossíveis. Nesse sentido, Cinderela tem pessoas dizendo frequentemente que desejam a realidade diferente, mas os discursos não carregam potencial subversivo. As intenções de revolução geram conciliações forçadas até para os parâmetros dos contos de fada. As crises são resolvidas com boa fé nesse entorno multicolorido e praticamente inofensivo.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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