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Sinopse

Um dos maiores símbolos de luxo na década de 1950, o Cine Marrocos foi sede do primeiro festival internacional de cinema do Brasil. Em 2013, o lugar se tornou lar da segunda maior ocupação de sem-tetos de São Paulo. Recontando a história do estabelecimento em depoimentos das pessoas que o ocuparam, destaca-se a dualidade entre a riqueza e a pobreza que esse espaço veio a representar.

Crítica

Comumente alvo de debates acalorados entre favoráveis e detratores, o tema das ocupações de prédios públicos abandonados por famílias sem-teto é encarado em Cine Marrocos a partir de uma dimensão lírica permitida pelo próprio cinema. O imóvel então preenchido novamente de gente, e, por conseguinte, de vida, é o da antiga sala que dá nome ao longa-metragem escrito e dirigido por Ricardo Calil. Ali, no ano de 1954, desfilaram astros e estrelas de renome mundial num festival de proporções internacionais, conforme mostram as imagens de arquivo que remontam a uma época de glamour, pompa e circunstância. Outrora palco do firmamento da Sétima Arte, o espigão localizado no centro de São Paulo é utilizado como moradia por brasileiros e refugiados, latino-americanos e africanos, que encontram um ambiente acolhedor. Todavia, o documentário não se contenta em observar, pura e simplesmente. Para configurar a sua singularidade, se vale do dispositivo de reinterpretação dos clássicos exibidos na telona.

A arte é o conduto pelo qual boa parte dos moradores provisórios do Cine Marrocos se expressa. É particularmente feliz a relação estabelecida, em dado momento, entre o cotidiano dos habitantes e Noites de Circo (1953), um dos mais importantes filmes de Ingmar Bergman. Mimetizando cenas marcantes, Ricardo Cali cria uma camada de compreensão que extrapola a beleza superficial da alusão. Sim, porque especificamente a obra supracitada fala de um grupo de artistas mambembes, marginalizados por setores diversos da sociedade, constantemente atravessados pela humilhação. Essa demão, no entanto, não está ali escancarada, sequer é verbalizada, sendo acessível de todo apenas a quem previamente assistiu ao original. Tal procedimento de espelhamento acontece com outros exemplares de referência, sendo o mais emblemático deles, dentro da proposta diretiva, o com Crepúsculo dos Deuses (1950), escrito e dirigido por Billy Wilder sobre o ocaso de uma decadente "instituição" antes celebrada – como o Marrocos.

Cine Marrocos, porém, não cria vínculos tão consistentes entre os exercícios de encenação e a situação social que leva às ocupações. A despeito do encanto dos jogos guiados pelos atores Ivo Müller e Georgina Castro, por meio dos quais homens e mulheres adquirem status de personalidades cinematográficas – ou históricas, como no caso de Júlio César, extraído da peça de William Shakespeare e adaptado às telonas pelo cineasta Joseph L. Mankiewicz –, o filme não se ocupa fortemente de possíveis desdobramentos. Diferentemente de César Deve Morrer (2012), com o qual possui parentesco, a criação de Ricardo Calil acaba não correlacionando umbilicalmente forma e conteúdo, sobretudo ao não investir na consolidação dos resultados que surgem ocasionalmente. Mesmo assim, é possível observar os lucros nas entrelinhas, além de acompanhar relatos dramáticos, como a do africano que revela o vislumbre forçado de barbaridades cometidas contra membros de suas famílias. Nesse molho, há ainda a imprensa e sua predisposição a falar das "invasões".

Ricardo Calil evita entrar integralmente na questão política intrínseca à atividade dos movimentos de democratização das moradias. Somente em um instante, Vladimir, o líder do MSTS – Movimento Social dos sem Teto Urbano, manifesta surpreendente simpatia pelo partido PSDB, por figuras políticas abertamente contrárias a atividades como a sua e que, tampouco, se preocupam em criar alternativas oficiais. Cine Marrocos aponta à hipocrisia do dirigente extorsionário ao mostrar, por meio de uma reportagem, sua prisão por associação com o tráfico de drogas. É fornecido espaço para que o espectador reflita acerca de determinados estigmas disseminados em tempos de fake news, como a distorcida generalização gerada por casos específicos como o citado. Se valendo da arte para oferecer aos moradores meios de expressão, para isso recorrendo aos “fantasmas” do Cine Marrocos, o realizador faz um filme com gostinho de insuficiência, especialmente quanto à questão sociopolítica inerente às ocupações, mas bonito e atento ao dado humano.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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