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Crítica


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Sinopse

Um jovem é estuprado. Segundo ele, faltava coragem para falar sobre isso. O cinema se torna um meio.

Crítica

O cinema pode ser muitas coisas, dentre elas: janela, para que tenhamos acesso privilegiado à vastidão de um mundo de todo inalcançável; espelho, a fim de que ganhemos a possibilidade de nos enxergar e com isso, talvez, nos tornarmos pessoas melhores; porta (de entrada e/ou saída), abertura para que escapemos e/ou nos confrontemos com tudo que potencialmente incomoda. Cinema Contemporâneo é a soma de dois incômodos de naturezas diferentes, mas que aqui são conjugados imediatamente pelo cineasta Felipe André Silva. O primeiro deles é com o documentário em primeira pessoa, tipo de abordagem que ganhou inúmeros adeptos no Brasil nos últimos anos. Apesar de alguns exemplares muito bons, há aqueles em que a lamúria e a autocomiseração ditam resultados nem sempre potentes, às vezes até “umbigocêntricos” demais. O segundo é o diante de um passado silenciado, uma série de abusos (de várias ordens) que se transformam em marcas indeléveis à vítima. E esses dois desconfortos são amalgamados num filme curto, potente e...incômodo.

O incômodo é o que inviabiliza o conforto. E seria pedir demais de alguém abusado de maneiras heterogêneas – e essas não são esmiuçadas aqui – que viva um sossego anestesiante ao ser (re)atingido em cheio pela violência persistente na memória. Então, porque o cineasta precisaria deixar o espectador confortável? A voz do narrador Gustavo Patriota dá tonalidades e nuances próprias à história pessoal e intransferível. Portanto, Felipe André Silva conta seus traumas por meio de alguém que o representa. E por mais que o texto diga que o realizador concorda com o excesso dos documentários alicerçados no “Eu”, ele não enxerga alternativa diante da necessidade/vontade de externar o que por muito tempo ficou calado. Portanto, podemos a inquietação é permanente. O ideal seria não ter de falar disso e desse jeito. Mas, já que isso existiu, é desse jeito que vai ser contado, pois talvez não haja outro tão eficiente. E tais questões alimentam subliminarmente a narração.

Felipe André Silva utiliza como dispositivo imagético uma fotografia. A voz do ator – um “Ele” falando a partir de um “Eu” encenado – avisa que a imagem está repleta de homens abusadores, de pessoas sem escrúpulos que determinaram lesões permanentes na existência de alguém antes inocente. Em vez de mostrar o panorama revelado na sua totalidade, o diretor de Cinema Contemporâneo vai escrutinando suas pequenas partes lenta e sucessivamente. Com a câmera próxima da foto, vemos texturas, ranhuras, marcas do tempo e intervenções que a ressignificam de acordo com a experiência retomada. O procedimento aparentemente é simples e conveniente, mas contém em si mesmo uma ponderação forte. As lembranças estampadas desvanecem com o tempo em suporte físico, são passíveis de modificações e até mesmo de um desaparecimento completo. Nesse sentido, há uma sugestão do impacto do que fica como reminiscência. Por mais que aquela fotografia um dia suma, o que ela simboliza permanecerá vivo, a não ser em virtude de enfermidades ou de algo que as valham.

Cinema Contemporâneo traz embutida nessa breve trajetória confessional uma gama de enredamentos e indagações. O narrador medita sobre o status de vítima, traz à tona opiniões convergentes e divergentes da sua, relativiza determinados eventos e apenas num momento é específico. Neste, Felipe/Gustavo conta que dois homens ejacularam num copo e obrigaram uma criança (ele/eu) a beber. Em outros instantes, o cineastas se restringe a falar das sensações que as lembranças dolorosas sempre carregam consigo. O protagonista afirma que ninguém mais poderia contar a história. Portanto, mesmo que tenha dito anteriormente não gostar dos contornos de um documentário em primeira pessoa, não enxerga saídas radicais frente à necessidade/vontade de trazer à tona o que ficou silenciado. A escalação do ator para representa-lo pode ser entendido como um gesto de resistência ao modelo, afinal de contas, se trata de um “Eu” na performance de um terceiro (Ele). Muitas coisas cabem nesses cinco minutos pungentes, instigantes, íntimos e propositivos.

Filme visto no VI Cine Jardim: Festival Latino-Americano de Cinema de Belo Jardim, em agosto de 2021.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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