Crítica

A cena inicial de Clamor do Sexo parece banal. Dois jovens namoram no carro: ele quer ir além das carícias, enquanto ela rechaça qualquer contato mais íntimo. Abrindo um pouco o campo de visão, temos a cachoeira que os emoldura, uma brilhante metáfora visual que amplifica não apenas o acontecimento aparentemente corriqueiro que se desenrola no centro da imagem, mas o filme como um todo. Ali, a câmera de Elia Kazan cria uma associação forte entre a violência das águas em queda incessante e o desejo que irrompe intenso entre Bud Stamper (Warren Beatty) e Wilma Dean (Natalie Wood). Ambos, o desejo e água, neste caso, são forças da natureza que não deveriam ser represadas. A trama do filme se passa no Kansas, em 1928, ou seja, no interior carola americano, terreno próprio para concepções moralistas e conservadoras.

Wilma conversa com a mãe sobre desejo, nas entrelinhas, já que sente vergonha por querer transar. Para Bud, a expectativa do pai que aposta todas as fichas em seu futuro como atleta, sem ao menos consultá-lo a respeito de suas próprias vontades, é a fonte maior do desconforto. Contudo, Kazan não está disposto a jogar nas costas dos mais velhos toda a culpa pelos fantasmas dos filhos, ainda que as figuras aqui, principalmente a materna de um lado e a paterna do outro, obviamente tenham interferência no caminhar meio trôpego e cada vez mais acidentado de seus descendentes. Não são apenas as criações, passadas adiante como espólio, que oprimem, mas também o próprio meio no qual à mulher, por exemplo, não é reservado o direito de desejar, entre outras restrições que evocam a famigerada tradição.

Mesmo que sofram por conta da educação recebida, Bud e Wilma, sem perceber, reproduzem os conceitos e os preconceitos dos pais. Ele vê com olhos desconfiados as mulheres que não têm um comportamento angelical, quase santificando a virgindade, o recato. Ela, de maneira semelhante, olha com desdém para as colegas mais liberais, as que não condenam o próprio desejo à clausura. Clamor do Sexo fala também a respeito do que podemos ao não deixar àqueles que vêm depois de nós. Não por acaso, inúmeras vezes no filme os pais mencionam herança patrimonial. Kazan reforça aí a miopia deles com relação àquilo que estão legando aos filhos na seara da formação de seus caráteres, de suas personalidades.

Em Clamor do Sexo, a contenção do desejo logo se torna problema clínico, primeiro com a convalescência de Bud, depois com o surto de Wilma. A somatização é efeito colateral desse movimento contrário à natureza, de evitar o ato sexual em virtude de forças excessivamente reguladoras que fazem do amor refém da incompletude. Caminhamos cada vez mais, e inexoravelmente, para um final amargo, no qual as aspirações da juventude se tornam lembranças dolorosas e resignação frente às contingências da realidade. Elia Kazan descortina as particularidades do interior americano, passa pela quebra da bolsa de valores de 1929, articulando macro e micro ambiente, brilhantemente tornando intrínsecos elementos de formação social e anseios particulares nesta que é uma de suas maiores realizações.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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