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Crítica


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Sinopse

Bernadine Williams tem os ombros e a consciência pesados após muitos anos como responsável por conduzir sentenciados à morte durante seus últimos passos. Ela acaba criando um laço afetivo com um condenado, o que complica ainda mais as coisas.

Crítica

Um dos erros mais comuns na crítica cinematográfica é avaliar determinado filme baseado na expectativa do crítico, e não pelo que de fato tal obra apresenta. Ou seja, desenvolver uma análise pelo que se esperava a respeito – e se alcança ou não tais parâmetros – ao invés de focar na proposta original do realizador e no efeito (ou não) de suas ações. Clemência, longa escrito e dirigido pela cineasta afro-americana (apesar de nascida na Nigéria, com apenas um ano de idade se mudou, junto com sua família, para os Estados Unidos) Chinonye Chukwu, poderia facilmente levar a esse tipo de armadilha. Afinal, tem-se aqui um enredo que opta por se debruçar a respeito da pena de morte, uma das mais terríveis características do sistema judicial norte-americano. E no meio das inúmeras histórias já contadas que compartilhavam desse mesmo pano de fundo, o que essa teria de especial a acrescentar? É justamente esse o ponto de vista que o espectador deve procurar, dividido entre a repetição de velhos clichês e a gratidão por se deparar com duas (ou talvez três) das melhores performances da última temporada.

Clemência é o nome dado ao ato deliberado do governador – a única pessoa capaz de tal gesto – de determinado estado (apenas 29 das 50 federações norte-americanas fazem uso desse recurso drástico) de ‘perdoar’ aquele no ‘corredor da morte’ antes de sua execução. Ou seja, caso a autoridade máxima política daquela região decida conceder clemência ao acusado, esse não estaria inocentado ou liberto. O citado gesto permite apenas que o agraciado continue vivo, ainda que siga atrás das grades. São poucos os casos que conseguem esse “perdão institucional” – cerca de 10%, segundo números recentes. E, principalmente, quando o acusado – e já julgado – segue afirmando inocência, mesmo após todos os processos legais terem sido superados. Se persiste qualquer detalhe nebuloso a respeito da condenação, enfim. Nas demais situações, tal resultado é quase impossível. Talvez por isso fosse esperado um debate a esse respeito.

Quando Clemência começa, a diretora Bernadine (Alfre Woodard, excelente) acompanha os procedimentos necessários para que se cumpra a lei em relação ao preso Victor Jimenez (Alex Castillo). É esperado até o último momento por uma manifestação favorável ao condenado por parte do Governo, mas essa não chega. Um homem é morto sob os olhares atentos dos responsáveis e testemunhas. Em nenhum momento aquele que perece se manifesta contrário ao seu destino. Como últimas palavras, ao invés de se dizer vítima de uma injustiça, opta por uma reza. Sabe bem o que lhe espera. Apenas a mãe, também presente, segue fervorosamente pedindo por um milagre que nunca chega. Se para ela o trauma será eterno, engana-se quem pensar que os demais envolvidos encaram tal execução apenas como “parte do trabalho” e não levam, consigo, suas próprias cicatrizes. Estão todos feridos, tantos os vivos como o morto.

Mas rei morto, rei posto, e no dia seguinte um novo prisioneiro se torna o próximo em uma fila mortal. Anthony Woods (Aldis Hodge, que com habilidade consegue alternar entre a revolta e a esperança, entre o sorumbático e o desesperado) conta com manifestantes pelos direitos humanos protestando a seu favor, uma ex-namorada que ressurge após tanto tempo para uma importante revelação e, principalmente, com um advogado (Richard Schiff, de The West Wing, 1999-2006, sempre ótimo no tipo que entrega) que, mesmo sem desistir, está cansado de tantas derrotas. Seria curioso se, ao assumir essa narrativa, o filme se ocupasse em refletir a respeito da validade ou não dessa barbárie, se o Estado tem ou não o direito de tirar a vida de uma pessoa – independente dos atos que essa teria cometido – e se os efeitos desse recurso beneficiam, de fato, algum dos envolvidos. Porém, parece irresistível acrescentar a esse conjunto em declaração de inocência. Se não há certeza se Woods cometeu ou não o crime que lhe foi impingido, tais conclusões se tornam mais óbvias. E uma reflexão, repleta de prós e contras de ambos os lados, acaba facilitada e enfraquecida.

No meio desse turbilhão silencioso de emoções, impossível tirar os olhos das reações – ou falta de, acima de tudo – da protagonista vivida por Woodard. Uma das maiores intérpretes de sua geração, é um perfeito exemplo do racismo estrutural vigente em Hollywood: com uma carreira não menos do que brilhante por mais de 40 anos, conta com apenas uma indicação ao Oscar, e por esse trabalho recente, certamente um dos pontos altos de sua trajetória, recebeu algumas indicações de prestígio – Bafta, Spirit, Gotham – sem um único reconhecimento, no entanto, à altura do que alcança em cena. Toda a opressão que sente, por conduzir uma instituição que nada mais é do que um abatedouro de vidas humanas, resulta em explosões internas das quais luta para impedir que se manifestem diante dos que a rodeiam, seja o marido, que se esforça para entendê-la, ou mesmo os colegas de trabalho, eles também lidando com suas dores. Mais do que o coração, ela é a alma de uma trama que fala alto através de tudo que é não-dito, não visto, não celebrado. Um gigantesco nada de impotência e sofrimento, refletidos pelos olhos hipnóticos e amortecidos em uma intérprete disposta a desaparecer por detrás de um personagem que se imprime com fortes marcas.

 

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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