Crítica
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Crítica
De uns tempos para cá, uma empolgante leva de novos cineastas afro-americanos têm reutilizado gêneros, tropos e modelos consagrados para (re)construir imaginários tendo negros no protagonismo. Jordan Peele se valeu do horror para discutir tensões raciais, entre outras coisas, em Corra! (2018), Nós (2019) e Não! Não Olhe! (2022). O mesmo aconteceu com Boots Riley, diretor que bebeu na tradição da ficção científica para atingir o absurdo a fim de enfrentar a segregação em Desculpe Te Incomodar (2018). Melina Matsoukas entrou nessa com Queen & Slim: Os Perseguidos (2018), renovando as típicas histórias de amantes levados a cair na estrada numa atitude transgressora, mas desta vez colocando a falta de opção dos protagonistas como sintoma do racismo. Os exemplos dessa potente tendência são inúmeros, também presentes nos programas de TV, vide Lovecraft Country (2020), série que reciclou o ideário de um autor racista (H.P. Lovecraft) para celebrar homens e mulheres negros numa trama emoldurada pelo horror. Chegamos a Clonaram Tyrone!, longa-metragem de estreia do cineasta Juel Taylor. O começo da trama não parece conter nada demais. Ambientada num bairro violento dos Estados Unidos, ela mostra o traficante Fontaine (John Boyega), o cafetão Sick (Jamie Foxx) e a prostituta Yo-Yo (Teyonah Parris). Um deles é assassinado e acorda normalmente na outra manhã. Como?
Na descrição acima, as atividades precedendo os nomes dos personagens não é algo gratuito, pois essas funções específicas são rótulos. Aproveitando-se da metalinguagem para ressignificar papeis estereotipados, Juel Taylor coloca no centro da ação, como os agentes da transformação, três pessoas decalcadas do universo Blaxploitation – movimento cinematográfico dos anos 1970 nos Estados Unidos que encheu as telonas de homens e mulheres negros convivendo em ambientes violentos, estilizados, descolados, repletos de...traficantes, cafetões e prostitutas. Não consensual sequer às diversas vertentes do movimento de afirmação afro-americana em sua época (umas o consideravam empoderador, outras um modo de estigmatizar ainda mais a população negra), o Blaxploitation é retrabalhado pelo protagonismo das figuras vividas por Boyega, Foxx e Parris. Para confirmar o vínculo, um coadjuvante chama a prostituta de Foxy Brown, nome de um dos ícones do movimento – personagem interpretada por Pam Grier. Retomando o enredo, ele mostra a situação excepcional de alguém “sobrevivendo” a diversos tiros desferidos à queima-roupa. A partir da descoberta posterior de um laboratório secreto, várias portas de consciência são abertas gradativamente diante dos olhos do trio reproduzido do imaginário anacrônico para colocar em pauta/xeque a força simbólica dos estereótipos. Bingo.
Por fora, Clonaram Tyrone! retoma o velho modelo do herói modificado pela consciência de que sua vida é uma mentira completa. Fontaine passa a questionar os pilares de sua existência, da voz materna que sempre afasta suas intenções de aproximação às memórias que ajudam a formatar uma personalidade marcada pelo luto. Ao descobrir que há um plano de controle social para garantir certas atitudes da população de seu bairro, ele contempla o desmoronamento da própria concepção de realidade. Já vimos isso diversas vezes. Porém, aqui a reincidência do clichê sintoniza o filme às produções citadas no primeiro parágrafo deste texto. Taylor resgata personagens e situações desgastados pelo uso excessivo, mas com o intuito de gerar novos significados a partir do fortalecimento pelos atuais discursos de afirmação. Dentro dessa perspectiva, faz sentido reiterar os estereótipos do traficante, do cafetão e da prostituta porque Juel Taylor (que assina o roteiro em parceria com Tony Rettenmaier) faz dessa reciclagem um Cavalo de Tróia por meio do qual entrega a crítica. Seus alvos são os rótulos associados antes à negritude nos cinemas como forma de manter a parcela segregada da população dentro de um universo exíguo e asfixiante. Portanto, em sentido estrito, o filme é sobre os papeis sociais aos quais homens e mulheres são submetidos, a essa restrição dos territórios da negritude no imaginário coletivo.
Um detalhe que nos ajuda a compreender melhor a habilidosa construção de discurso está na diferença entre as tonalidades das ótimas atuações de John Boyega, Jamie Foxx e Teyonah Parris. Boyega está sóbrio, assumindo a postura de bandido casca-grossa, até mesmo porque ele precisa expressar os dilemas do herói modificado pela conscientização. Já Foxx e Parris estão dois tons acima, ambos se deliciando com os seus exageros, caras e bocas. Os dois são caracterizados por tiradas espertas e saídas engraçadinhas, indicativos do artificialismo que, por sua vez, é sintomático da contundência dessa metalinguagem. Sendo assim, Juel Taylor surpreende positivamente pela consistência em seu primeiro trabalho como diretor de longas-metragens. Principalmente quanto à coerência mantida entre os elementos e como eles se comunicam em prol da construção de uma ficção científica pontiaguda com boas e generosas doses de diversão. É preciso suspender a descrença em episódios importantes, mas nada convincentes – sobretudo o da palavra que submete clones, aproveitada de modo displicente, e dos movimentos espalhafatosos do iminente contra-ataque que passam despercebidos pela dura vigilância do vilão. No entanto, nada que comprometa tanto a mensagem que o filme carrega e as suas várias qualidades como cinema. Os dilemas existenciais inerentes à clonagem e afins ficam em segundo plano, pois a prioridade é questionar modelos, encarar problemas e propor insurreição.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Marcelo Müller | 8 |
Francisco Carbone | 9 |
Renato Silveira | 8 |
Daniel Oliveira | 6 |
Leonardo Ribeiro | 7 |
Kel Gomes | 9 |
MÉDIA | 7.8 |
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