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Crítica


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Sinopse

Walter, um ator decadente, nunca foi próximo da filha Nic. Quando faz um gesto de reaproximação, recebe a tarefa de dar carona à amiga dela, Kim, até a chácara onde devem passar o fim de semana. No caminho, Walter e Kim bebem em excesso e fazem sexo. No dia seguinte, no entanto, o homem descobre que a garota era a namorada de sua filha, com quem Nic pretende se casar.

Crítica

Cinéfilos devem identificar alguns traços familiares desde os primeiros segundos de Coincidência em Família (2018). O filme se abre com letreiros escritos na tipografia típica dos filmes de Woody Allen, junto de um jazz jocoso habitual nos filmes de Allen. Um personagem gaguejante faz uma longa narração a outra pessoa sobre seus sentimentos, e recebe alguma resposta mordaz, comum aos diálogos de Allen. É difícil determinar se o início constitui uma homenagem, paródia ou plágio das comédias do diretor norte-americano. No entanto, a busca por emular as comédias de erros do autor, calcadas em textos sarcásticos e personagens autocentrados, se multiplicam ao longo e toda a narrativa. Ora, para referenciar de maneira tão explícita um dos diretores de assinatura mais reconhecível da história do cinema, poderia se exigir que o resultado estivesse no mínimo à altura do trabalho de Woody Allen. Entretanto, o cineasta Michael J. Gallagher, experiente curta-metragista e diretor de séries de televisão, está longe da precisão do ritmo e do humor percebida em Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (1977) ou Tiros na Broadway (1994), por exemplo.

Um dos aspectos mais questionáveis da comédia romântica diz respeito à sua construção estética. A direção de fotografia de Greg Cotten apresenta um trabalho amador, repleto de escolhas contraproducentes, com aparência de improviso ou indecisão. Os enquadramentos são fechados demais no rosto dos atores, o que limita a expressividade do elenco que não pode se mover a ponto de sair de quadro. As diversas cenas noturnas ou em espaços internos (a tenda, o bar) possuem uma iluminação falha, com poucos pontos de luz, sem volume nem contraste. Os personagens se tornam chapados no cenário, ao passo que os esforços da direção de arte são pouco valorizados. Estranhos desfoques sugerem uma intrusão de efeitos de pós-produção, enquanto as cenas ao ar livre, filmadas em luz natural, insistem em posicionar Kim (Emily Bett Rickards), Walter (Matthew Glave) e Nic (Jana Winternitz) em sombras pouco favoráveis. Em conjunção com a montagem meramente funcional – os diálogos resumem-se a longas sequências de planos e contraplanos –, o filme ostenta a aparência pouco convidativa de um filme B que não aproveita as liberdades de humor e tom permitidas pelo cinema B.

A comicidade provém basicamente de desencontros e surpresas improváveis – as tais “coincidências” descritas em forma de eufemismo pelo título nacional. A ideia de um pai fazendo sexo com a namorada da filha às vésperas do casamento das duas soa improvável, e o roteiro não efetua grande esforço para justificar seu conflito central. Por que Nic chamaria o pai para o pequeno casamento entre amigas, se sequer havia revelado a sua homossexualidade? Por que Kim nunca admite ser a namorada da filha, e em que circunstâncias estaria sexualmente atraída por um homem que considera moralmente detestável? Por que todas as meninas lésbicas do acampamento neohippie teriam uma atração incontrolável pelo homem mais velho? A única resposta possível provém do ponto de vista do filme, ou seja, aquele do pai, e não da filha, nem mesmo da noiva. O real dilema da história se situa na vida das duas – aquela que trai, e aquela que é traída -, no entanto, o projeto faz questão de deixar as dúvidas, remorsos e eventuais heroísmo junto ao homem de poucas qualidades, que vive da fama obtida numa série de televisão trash de décadas atrás. A narrativa fará o possível para desculpá-lo, reconhecendo as virtudes do sujeito em busca de redenção. Ao mesmo tempo, se importará pouco em detalhar o relacionamento das garotas.

“Isso tudo é para você”, afirma um personagem a Walter, em referência aos elogios recebidos pelo ator. Coincidência em Família adota o mesmo princípio, oferecendo o quiproquó familiar para ele, como se o ponto de vista do único homem, o único heterossexual fosse o mais relevante diante desta comunidade feminina e lésbica. Ao final, entre a dúvida “Será que ele vai contar à filha?” e “Será que vai esconder o caso dela?”, seria comum a narrativa buscar uma via alternativa, escapar da armadilha perigosa de apontar um dos dois caminhos. Ora, Gallagher percorre uma das vertentes, de maneira unilateral, transformando o dilema num episódio de julgamento moral. Basta assistir à cena final, quando uma pessoa é perdoada, enquanto a outra é abandonada, para se compreender que tipo de ensinamentos são adicionados à trama. Curiosamente, a história repleta de belas mulheres relacionando-se entre si é contada por um homem heterossexual, para homens heterossexuais. Sem surpresa, a história é dirigida por um homem, e escrita por homens. Falta abraçar o aspecto queer deste conto enquanto subversão de paradigmas e desconstrução de regras. Para o cineasta, no entanto, era preciso que o crime encontrasse um castigo.

Enquanto feel good movie, portanto, o projeto possui alcance limitado. Seja pela incapacidade de resolver o impasse com leveza, ou pelo timing cômico falho nas piadas e na montagem, o resultado demonstra esforço em aparentar descolado. Mesmo assim, fracassa nas gags: vide o alívio cômico construído em torno da amiga interpretada por Lily Holleman. Os atores exploram pouco o potencial dos inúmeros close-ups, optando por uma expressividade mínima, blasé. Ao mesmo tempo, jamais se conhece o passado de Nic, Kim e Walter o suficiente para justificar o rancor da filha, a atitude abrupta da nora e os supostos descasos do pai. Ele teria suspeitado do lesbianismo da filha? Kim sempre foi bissexual? De que maneira o tratamento do pai com a mãe de Nic espelha a atitude dele às vésperas do casamento da jovem? A comédia dramática retrata o inesperado conflito com um teor de desapego e desinteresse, até reverter a lógica e aplicar o peso de um olhar punitivo. Talvez a proposição inversa fosse mais interessante, com as dúvidas e angústias sendo finalmente diluídas rumo à conclusão. O roteiro prevê um final otimista apenas para um personagem, o seu herói heterossexual, que se torna uma pessoa melhor por ter convivido com as diferenças. Quanto às meninas em crise, o futuro delas não é considerado digno de desenvolvimento narrativo. Quem se importa, certo?

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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