Crítica


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Sinopse

O jovem arquiteto Viktor sofre um acidente de carro e acorda num universo paralelo. Aos poucos, ele descobre que seu corpo está em coma, e ele ocupa atualmente um espaço moldado por suas memórias e desejos. No entanto, este mundo é marcado por inimigos que podem matá-lo de fato. Viktor passa a investigar os segredos do local na tentativa de acordar.

Crítica

Viktor (Rinal Mukhametov) é “o escolhido”. Este sujeito comum, sem grandes qualidades físicas nem mentais, descobre ser a única pessoa capaz de impedir o ataque de vilões poderosos dentro de um universo fantástico. A presença do escolhido domina amplamente o imaginário das ficções científicas, desde Star Wars (1977) até Matrix (1999), passando pelas fantasias juvenis como Harry Potter (2001 - 2011), Maze Runner (2014 - 2018), Jogos Vorazes (2012 - 2015) e Divergente (2014 - 2016), com os quais o projeto russo possui notável afinidade. Trata-se da fórmula clássica do herói: o protagonista descobre a sua força, aceita o chamado à aventura, salva mocinhas indefesas, combate inimigos e restitui a paz. Talvez a única novidade digna de nota se encontre na função de arquiteto, pouco considerada dentro da fantasia – ainda que A Origem (2010) e a série The Good Place (2016 - 2020) reservem espaços privilegiados para estes “construtores de mundos”. O poder da mente, quem diria, precisa de conhecimentos acadêmicos sobre estrutura, cálculo e física. A magia busca se legitimar pelo aceno à razão.

À primeira vista, Coma: A Dimensão do Futuro (2019) possui a aparência e a estrutura de um videogame. Os cenários são ostensivamente maleáveis: prédios se inclinam, pontes efetuam arcos sobre si próprias e avenidas formam ângulos de 90º com as ruas. O herói é convocado à aventura sem justificativas prévias: ele parte no meio de um tiroteio, recebendo ordens expressas de como agir. Esta constitui outra escolha tradicional das jornadas do gênero: o espectador é levado a se identificar com o homem estrangeiro, de modo que a surpresa de Viktor coincida com a nossa. A postura do arquiteto justifica as inúmeras explicações das pessoas ao redor, limitadas a guias-professores. Eles sublinham que o personagem se encontra num coma, vivendo uma realidade alternativa marcada por uma mistura de lembranças e sonhos. Já os inimigos, os Ceifadores, seriam a representação das pessoas cujas mentes morreram, no entanto permanecem animadas por aparelhos, em estado vegetativo. A possível discussão sobre eutanásia, sobre os limites da morte e da consciência passa longe deste roteiro, que busca uma simples desculpa para a presença dos adversários. De onde vêm? O que desejam? Por que atacam os humanos? O diretor Nikita Argunov se importa pouco com este debate: basta que existam vilões, mocinhos, e que se enfrentem num campo de batalha.

A este propósito, o filme se move por meio de conflitos artificiais. Sem precisar resgatar alguém ou encontrar saídas, Viktor e seus colegas poderiam permanecer tranquilamente no edifício onde moram. Ora, na ausência de motivações concretas, eles se lançam por iniciativa própria no combate mortal contra os Ceifadores. O antagonista, imerso numa reviravolta facilmente antecipada, solicita ao Arquiteto que construa uma grande cidade – espaço que jamais desempenha qualquer função narrativa. Phantom (Anton Pampushnyy) é apresentando enquanto personagem de força e agilidade descomunais, além de ponta do triângulo amoroso composto por Viktor e Fly (Lyubov Aksyonova). Entretanto, passada certa altura da narrativa, o filme abandona esta figura. A descoberta de um avião produz efeito nulo nos rumos da história. Os criadores desenvolvem super-heróis com habilidades específicas, mas depois não sabem como colocá-las em jogo – vide as participações apáticas de Tank e Kabel. Eles aparentam ter condensado uma série de televisão, ou um roteiro para diversos filmes, num único longa-metragem.

Ao menos, a aparência deste mundo se torna razoavelmente convincente. Alguns efeitos visuais são fracos, sobretudo em cenas subaquáticas. Entretanto, a geografia dos prédios, a composição dos espaços e o desenho dos monstros (seres fluidos, por constituírem matéria de sonho) possuem bom impacto nas imagens de fundo infinito, em grande angular, para o espectador assimilar o máximo possível do espaço. Coma: A Dimensão do Futuro desperta a impressão de ser um filme onde tudo, ou quase, se passa sobre uma tela verde, com efeitos projetados digitalmente a posteriori. Para uma jornada tão dedicada à arquitetura, teria sido fundamental resgatar elementos mais físicos, ou ainda confrontar a virtualidade com a realidade (o estado de coma contra a vida real). Ora, Argunov despreza os cenários que não possa construir do zero, assim como num game interativo. Viktor possui um passado limitado e capacidades restritas, mas são exatamente estas características universais que interessam ao criador. A partir de um sujeito médio, ele sugere que qualquer pessoa (inclusive nós, espectadores médios) pode se converter em alguém especial.

O dilema imposto aos personagens desemboca numa questão complexa: se você pudesse viver nos sonhos, abandonaria a realidade em prol de um universo moldado pelos desejos? O decalque do real pode ser melhor do que o real? Há questões platônicas importantes a partir desta provocação, pertinentes em tempo de individualismo crescente e relações mediadas pela virtualidade. Em contrapartida, a maior parte destas reflexões ficará por conta do espectador, visto que a ficção científica evita explorá-las por si mesma. Ironicamente, o filme situado dentro da cabeça dos personagens despreza a psicologia humana. Neste sentido, aproxima-se de A Origem, referência inevitável. Nenhuma proposta deste projeto soa ousada ou particularmente criativa. Ressalvas à parte, o resultado impressiona pelo orçamento modesto de US$ 4 milhões: os efeitos visuais superam aqueles de diversas produções hollywoodianas que custaram dez vezes mais. Há competência técnica e domínio dos códigos do gênero, apesar da ambição restrita de se construir enquanto proposta autônoma. Talvez a comparação com os equivalentes norte-americanos constitua um objetivo e um motivo de orgulho para os artistas russos.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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