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Sinopse

Uma reflexão sobre diversos assuntos, como identidade de gênero, transexualidade, saúde, religião e psicologia. Na produção, o cineasta retrata o cotidiano de gays, lésbicas, trans e travestis de Bauru a partir da década de 1980, o surgimento das primeiras boates que se tornaram ponto de encontro desse grupo e a escalada de violência e homofobia.

Crítica

É muito interessante ver este documentário se abrir com a voz de uma mulher transexual, falando em primeira pessoa. Pense bem: quantos filmes narrados pela voz de uma pessoa trans você já viu no cinema? O procedimento se torna ainda mais valoroso porque Nany People não está narrando sua trajetória em tom confessional, e sim “interpretando” a cidade de Bauru, personalizada na voz da humorista e apresentadora. Como Somos (2020) parte da proposta lúdica de humanizar uma cidade, representada por uma mulher trans, enquanto convida homens e mulheres trans, drag queens, indivíduos gays e lésbicas a revelarem sua experiência de identidade de gênero e orientação sexual no interior de São Paulo. O cinema de temática LGBTQI+ costuma associar a liberdade individual ao espaço das capitais e megalópoles, no entanto o diretor Rafael Botta volta o foco para uma zona menos visada, buscando compreender os motivos que levam Bauru a se tornar um refúgio aparentemente progressista em meio a polos conservadores – ainda que exista um longo caminho a percorrer rumo à plena aceitação.

Estruturalmente, o projeto adota a forma mais convencional possível, alternando as “cabeças falantes” com poucos materiais de arquivo. O cinema documental precisa urgentemente se emancipar da dependência de depoimentos enquanto elemento central do discurso. A cada novo documentário muito bem-intencionado, porém concretizado em formato cômodo e conformista demais, a própria discussão se apequena – sem mencionar o fato de que, para discutir pessoas que ousam romper os padrões, seria necessário encontrar uma forma igualmente transgressora. Embora o talking head valorize as experiências íntimas, ele isenta a direção de buscar por si própria a criação de imagens (e não apenas captação ou apreensão do real) capazes de representar as dores, dificuldades e conquistas da comunidade em questão. Um pequeno interstício musical, utilizando imagens sobrepostas e retratando travestis caminhando pelas ruas à noite, constitui uma excelente iniciativa que o filme, infelizmente, não explora em outros momentos, tornando-se refém do que os entrevistados tiverem a dizer. Em outras palavras, o talking head confere tanta autonomia aos personagens quando a retira do diretor, caso o recurso não dialogue com criações autorais em paralelo. Este filme, no caso, contenta-se em deixar a forma em segundo plano para privilegiar o tema.

No que diz respeito às conversas, o diretor deixa os entrevistados confortáveis para falarem sem meios-termos, nem buscarem impressionar. Ao invés do caráter posado de muitos documentários do gênero, Como Somos carrega a bem-vinda aparência de conversa entre amigos, como se Botta estivesse sentado com colegas em uma mesa de bar. O teor das falas permite o humor e a provocação, mesmo que os debates mencionem questões adversas como a homofobia. Embora a proximidade humana seja louvável, a maneira como estas pessoas são retratadas levanta alguns poréns. Primeiro, a captação é obtida a partir de algum tipo de estabilizador manual que talvez busque fluidez, mas apresenta dificuldade em se concentrar nos rostos. Durante as conversas, o enquadramento começa a deslizar para baixo, rumo aos seios das mulheres trans e cis, ou então sobe lentamente até trazer teto demais ao quadro. Por trabalhar com a janela em scope, bastante retangular, os close-ups extremamente próximos soam como má ideia, visto que a mínima movimentação dos entrevistados faz com que saiam do ponto exato em que a câmera desejava captá-la. Por estes aspectos, a câmera está constantemente brigando para se adequar às falas, e chamando atenção excessiva a si mesma.

Em paralelo, a imagem em exteriores é estranhamente dessaturada, mesmo em dias ensolarados; alguns problemas de som invadem os depoimentos (por que se decidiu colocar a funcionária de um clube noturno sob uma barulhenta saída de ar?), e a equipe se reflete no espelho de duas mulheres trans, no que aparenta ser um pequeno deslize ao invés de um recurso metalinguístico. O documentário apresenta um cuidado técnico modesto, marcado por fotografia e som desiguais, ainda que parta da boa intenção de colocar seus personagens dentro de carros, nos clubes, praças e estações de trem, de modo a ocuparem literalmente a cidade. Bauru torna-se um personagem ativo, ainda que o roteiro nunca explique ao certo os motivos pelos quais o local teria se transformado numa cidade mais progressista que as municipalidades vizinhas. Teria sido excelente escutar o ponto de vista dos prefeitos, do raro grupo católico a colaborar com a Marcha da Diversidade, ou então retratar o culto evangélico que aceita pessoas LGBTQI+, mas o projeto se mostra acanhado em adentrar possíveis zonas de conflito: os personagens narram adversidades ausentes das imagens. Mesmo Tiffany, mulher transexual e jogadora de vôlei do Bauru, é timidamente mencionada e logo esquecida.

Ao menos, Como Somos adota uma organização gradual: partindo de um início estruturalmente confuso (o tema seria os clubes noturnos de Bauru? A descoberta da identidade trans?), começam a surgir blocos claros a respeito das conquistas legais da comunidade, da presença de transexuais no Carnaval, da luta contra a “cura gay” etc. O documentário demonstra a coragem de efetuar um diagnóstico (sugerindo que os L, G, B, T, Q e Is seriam desunidos e pouco politizados) e propor caminhos para superar os problemas (o engajamento dos jovens, a luta pela eleição de gays, lésbicas, transexuais etc.). Há uma breve menção aos retrocessos do governo Bolsonaro, sinal de que Botta está disposto a inserir seu filme na política partidária e urgente. O resultado nunca é tão incisivo quanto poderia ser, por depender excessivamente de seus entrevistados, que nem sempre lhe devolvem reflexões potentes. No entanto, articula um grupo variado de indivíduos, de diferentes classes sociais, etnias, gêneros e gerações, atentando-se a questões que vão das eleições à saúde pública, passando pela importância social de espaços de encontro como as casas noturnas. O diretor transparece um olhar equilibrado para os subgrupos da sigla LGBTQI+, colocando-os em pé de igualdade e enxergando-os enquanto membros de uma mesma comunidade. A capacidade de privilegiar o coletivo constitui um mérito notável do filme.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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