Sinopse
Laura deixa a namorada em Moscou e faz uma longa viagem de trem através da Rússia para encontrar artefatos arqueológicos em Murmansk. Ela divide seu vagão-dormitório com Vadim, jovem minerador desbocado e machista. Os dois se detestam inicialmente, mas com o passar dos dias, descobrem ter mais em comum do que imaginavam.
Crítica
Vagão Nº 6 oferece uma premissa conhecida: dois desconhecidos são obrigados a conviver ao longo de uma grande viagem. Inicialmente, se detestam, mas conforme passam os dias, aprendem a se tolerar e formam uma sólida amizade. Trata-se do ponto de partida comum a uma parcela considerável dos filmes indie norte-americanos, sobretudo no caso dos road movies. Aqui, a finlandesa Laura (Seidi Haarla) deixa Moscou, onde vivia com a namorada, e atravessa a Rússia a caminho de Murmansk, no intuito de encontrar um campo arqueológico. No mesmo vagão do trem, convive com Vadim (Yuriy Borisov), mineiro que se dirige ao local para encontrar trabalho. Tudo os opõe: a garota é tímida e reservada, ele é desbocado e grosseiro. Ela pretende seguir o trajeto em silêncio, ele conversa com frequência. Entretanto, na impossibilidade de trocarem de assento, descobrem aspectos menos radicais de suas aparências originais: ela se mostra uma malícia inesperada, e o rapaz revela certa ternura por trás do estilo bruto. Encontram-se no meio-termo, como convém aos projetos de conciliação pelo afeto, obcecados em aparar comportamentos extremos rumo à moderação. O discurso aposta na abertura ao acaso e às diferenças.
O diferencial do filme finlandês-alemão-estoniano-russo se encontra na sensibilidade do diretor Juho Kuosmanen para a condução do projeto - prova de que nenhum gênero ou subgênero possui valor em si, dependendo da maneira como for desenvolvido pelos criadores. Fugindo ao paternalismo reinante nas produções exibidas no Festival de Sundance, por exemplo, ele jamais enxerga seus protagonistas como figuras problemáticas precisando de conserto. Nenhum deles parte de um instante de sofrimento em direção à felicidade, pelo contrário: eles iniciam o percurso repleto de dúvidas afetivas e profissionais, e encerrarão com novas indagações despertadas no caminho. Laura e Vadim escapam ao estereótipo do outsider, do esquisito incapaz de se inserir socialmente. Pelo contrário: ela encontrou seu lugar no país estrangeiro, apesar do círculo restrito de amigos; já ele tem diversas conexões e demonstra uma capacidade impressionante de solucionar adversidades - de maneira nem sempre lícita ou moralmente aceitável. A oposição entre eles opera em chave mais sociológica do que de valores: são um homem e uma mulher, heterossexual e lésbica, russo e finlandesa, trabalhador braçal e pesquisadora universitária. Suas divergências decorrem das experiências de vida, não dos princípios.
Vagão Nº6 se desenvolve então como um curioso road movie da inércia: a dupla continua presa ao minúsculo vagão-dormitório durante inúmeros dias, saindo poucas vezes do trem durante o percurso. Enquanto permanecem sentados ou deitados, o resto da sociedade invade o espaço: uma mãe com um bebê e filho pequeno insistem em permanecer no assento alheio; um turista finlandês se junta ao grupo, e cruzam com outras pessoas no deslocamento ao vagão-restaurante. Para um filme de reclusão, o resultado se mostra dinâmico, tanto pelos acontecimentos inesperados durante o trajeto (típicos do road movie) quanto pela flutuação de tons entre o drama, a comédia e mesmo o suspense no caso da escapada noturna. O compartimento número 6 se converte no núcleo em torno do qual as ações acontecem, ora ocupado em excesso, ora vazio. Pelos indícios fornecidos em diálogos, descobrimos que o sujeito expansivo possui uma caráter menos popular do que se imaginava, enquanto a cientista sofre com a percepção crescente do fim de seu namoro. Pela sucessão de encontros, brigas e conversas, descobrem-se solitários, voltados um ao outro graças ao sentimento em comum. A clausura imposta pelo trem oferece à dupla um instante forçado de introspecção.
Esteticamente, o cineasta se confronta a desafios derivados dos espaços apertadíssimos, seja nos vagões ou corredores e banheiros. Filmes que buscam falsear esta limitação costumam gerar resultados fracos (vide Assassinato no Expresso do Oriente, 2017), mas o finlandês opta, junto ao diretor de fotografia J-P Passi, por assumir a proximidade física dos atores com close-ups. São os rostos que dominam a trama, e conforme Laura se levanta, ou Vadim se deita, a câmera efetua uma coreografia bem ensaiada para acompanhá-los sem perder as expressões de vista, nem de foco. A textura de película antiga e as captações em vídeo de baixa qualidade por parte da garota mergulham o resultado numa temporalidade antiga, ainda que indefinida. Os aspectos culturais específicos das culturas europeias se combinam com dilemas universais, neste encontro de opostos que se atraem. O filme foge à armadilha de idealizar seus protagonistas, filmando os cabelos bagunçados da viajante quando acorda, a posição estranha do sono dele, e o momento em que escorrega na neve e cai nos trilhos. O humor nasce do inesperado e do sentimento de inadequação - seria errado rir da queda de uma pessoa que mal conheço? Os códigos de conduta esperados do contato com desconhecidos (pense nas conversas de elevador, por exemplo) são bem explorados pelo roteiro generoso, porém cândido, evitando forçar piadas ou melodramas. Sustenta-se um sorriso agridoce no rosto do início ao fim, dispensando reais motivos de catarse - nem o riso eufórico, nem o choro profundo.
O fato de Seidi Haarla e Yuriy Borisov dominarem a quase integralidade da trama exige muito de ambos os atores, excelentes em suas composições. Eles se despem de vaidades enquanto oferecem um trabalho despojado de fala e corpo, dando a impressão de que receberam inicialmente dois personagens cômicos, até Kuosmanen pedir que atenuassem os gestos, progressivamente, restando um fundo de melancolia na dupla. Borisov, em especial, parece ter nascido para este tipo de malandragem que encarna com conforto ímpar. Vagão nº6 se encerra no formato de uma bela viagem de amigos, de ambições pequenas, inovação limitada, porém um trabalho precioso de desenvolvimento de personagens. O diretor toma a precaução de aumentar o impacto emotivo de cenas aparentemente anódinas (o jantar a dois), enquanto minimiza o teor de sequências de forte antecipação (o encontro com os petróglifos), promovendo uma espécie de montanha-russa emocional a partir de um espaço de poucos metros quadrados. Trata-se de uma forma humanista de cinema, em embalagem propositadamente discreta. Dentro de um festival como Cannes, repleto de autores formalistas e vaidosos, este posicionamento tem seu valor.
Filme visto na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em novembro de 2021.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
---|---|
Bruno Carmelo | 7 |
Daniel Oliveira | 8 |
Chico Fireman | 8 |
Francisco Carbone | 8 |
Bruno Ghetti | 9 |
Renato Silveira | 7 |
Leonardo Ribeiro | 8 |
MÉDIA | 7.9 |
Excelente crítica para um filme maravilhoso, repleto de ternura, poesia e grandes atuações dos dois protagonistas. Muito bons os conselhos da velha amiga (mãe? avó?) de Vadim a Ana inseridos no meio do filme como que uma pérola jogada no meio do todo. O final deste filme é grandioso de tão lindo. Faz a gente chorar por estar feliz e satisfeito.