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Crítica


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Sinopse

Num mundo cheio de violência, onde as mulheres se prostituem e são mortas, uma garota usa uma máscara para esconder seu gênero. Ao mesmo tempo, ajuda o pai, um viciado atormentado, a cuidar de um campo de beisebol. Um dia, ele é chamado para tocar em uma festa organizada por um traficante e não tem escolha senão levar a filha junto. No dia seguinte, ela acorda cercada pelo caos e pela morte e precisa lutar por sua liberdade.

Crítica

Compra-me um Revólver é um retrato peculiar e cálido de infâncias mediadas pela violência. Neste caso, a brutalidade advém dos carteis mexicanos que colocam os habitantes de seus largos domínios sob a mira do medo constante, impondo-lhes irrestrita subserviência. A protagonista do filme de Julio Hernández Cordón é Huck (Matilde Hernandez, filha do cineasta na vida real), pequena narradora dessa jornada em que a simples sobrevivência é considerada sinal de sorte. Precisando passar-se por menino, uma vez que as mulheres são quase totalmente alijadas desse cenário amplamente masculino e volátil, ela mora com o pai viciado, sujeito que faz de tudo para preservar sua integridade em meio a um cotidiano de servidão aos bandidos que adoram relaxar jogando beisebol. A mediação do olhar da criança confere ao conjunto uma fina camada onírica, algo substanciado em instantes-chave, como na tomada aérea do deslocamento entre cadáveres representados em papelão, vislumbre que evidencia um entrelaçamento entre a verdade e o diegético senso de aventura infante.

O realizador guatemalteco-mexicano não se preocupa em construir um contexto repleto de detalhes, pois o modo como articula os personagens nos poucos, porém vigorosos, ambientes em que a trama se passa é mais do que o suficiente ao pleno entendimento da conjuntura. Embora privilegie a perspectiva da menina, o recorte não se origina de um convencional filtro inocente da paisagem aviltante, uma vez que até o prisma de Huck é inadvertidamente influenciado por aquilo que a fabulação não dá conta de aliviar. A falta de explicações quanto à necessidade do banimento feminino daquela área demarcada pela agressividade de homens que expandem territórios à base das rajadas de bala se dá, a priori, porque a própria hostilidade prevalente em espaços pelos quais o cartel se desloca aponta à impossibilidade da vivência menos turbinada de testosterona. Todavia, essa suposta cessão a estereótipos é uma bela jogada falsa, vide a revelação acerca do chefe da organização criminosa e mesmo a resiliência da mulher que, firme, suporta essas turbulências.

Contando com uma interpretação comovente de Matilde Hernandez, Compra-me um Revólver desnuda circunstâncias duras, expondo ocasionalmente ao largo delas algo fora do estritamente ordinário. A fumaça violeta oriunda do trompete do homem sob o efeito de drogas é uma das liberdades poéticas que atravessam o enredo sem, contudo, desvirtua-lo. Isso acontece porque a construção narrativa é carregada de minúcias que tangenciam a fábula, sem toca-la frontalmente, mas a permitindo existir num plano subjacente. São indícios disso a máscara que Huck utiliza para resguardar a sua identidade e os meninos que surgem volta e meia, geralmente disfarçados de arbustos, a fim de também passarem despercebidos. Eles são inseridos no filme como espectros infantis, mas sintomaticamente longe da ingenuidade, como que salvaguardando sua natureza de crianças sem para isso alienarem-se. A missão de encontrar o braço decepado é a valiosa caça ao tesouro.

Na medida em que avança, deflagrando no caminho a aspereza da existência de Huck e do pai, Compra-me um Revólver demonstra afeição por aquilo que não está necessariamente ancorado nos fatos. Então, sem negar as atrocidades do cotidiano cruel de um México tornado propriedade de bandidos que assumem a postura de ditadores, Julio Hernández Cordón acessa, organicamente, a dimensão mágica frequente nas histórias tradicionais de seu país de origem, confiando aos pontos ligeiramente fora da curva do naturalismo a instância do misterioso. O mandatário que menciona gostar de ser homem e mulher, a participação significativa da trinca em busca de um pedaço literalmente extirpado por esse poder paralelo e a navegação pelo rio após o massacre que bane os asseclas impiedosos do mundo tensionado por seus semelhantes são todos sinais dessa vontade de expor as veracidades de um país feito refém da criminalidade, porém sem abdicar da fantasia.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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