Crítica


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Sinopse

Um militar prestes a ir para a guerra e uma musicista se casam por conveniência. No entanto, aos poucos esse relacionamento de fachada vai ganhando temperos por conta de uma paixão que surge inesperadamente.

Crítica

Não é mais novidade dizer que o mundo está polarizado. Na verdade, essa afirmação já se tornou um chavão (que certamente tem base na nossa realidade). Mas, não é apenas com relação aos debates político-ideológicos que as conversas/discussões estão perdendo nuances e rasurando as chamadas zonas cinzentas. Em todas as esferas sociais, das mais importantes às mais irrelevantes coletivamente, parece que tudo ficou resumido a dois caminhos. O que, claro, é uma enorme babaquice. Continência ao Amor apresenta a polarização como o principal elemento do conflito que impede o relacionamento entre a liberal Cassie (Sofia Carson) e o conservador Luke (Nicholas Galitzine). Progressista, ela é garçonete e luta para alcançar o sucesso por meio de sua vocação musical. Antiquado, ele é um rapaz que fez muita bobagem antes de se alistar no exército dos Estados Unidos e estar prestes a embarcar em missão para o Iraque. Portanto, a questão ideológica é vital ao discurso do longa-metragem dirigido por Elizabeth Allen Rosenbaum. Obviamente, se as diferenças de pensamento são os principais obstáculos a serem vencidos, das duas uma: ou essas disparidades são conciliadas, com ambos aprendendo a conviver com as particularidades alheias, ou simplesmente uma prevalece sobre a outra. Ainda que o roteiro assinado por Kyle Jarrow e Liz W. Garcia ofereça (felizmente) um contexto aberto a outros componentes, o que acontece é a segunda opção, pois um “cede” quase sem perceber.

Note como Cassie é encarada pelo filme: mesmo dona da razão, sempre como alguém inconveniente ao expor as suas formas de pensar e agir. No sentido oposto, Luke, embora evidentemente reproduza certos comportamentos nada louváveis ou responsáveis, é observado como a fração mais emocionalmente adequada desse relacionamento conturbado. A protagonista feminina de Continência ao Amor é de origem latina, ostenta na sacada as bandeiras dos movimentos negro e LGBTQIAP+ e fica indignada quando está diante de uma evidente injustiça social. Já o protagonista masculino é o típico branco de origem anglo-saxã (ou europeia) que faz um esforço desproporcional para agradar o pai severo com quem antigamente rompeu relações. Especialmente nos instantes iniciais do filme, Elizabeth Allen Rosenbaum busca desviar um pouco a atenção do discurso meramente romântico. E isso faz bem ao todo, pois oferece itens e demais possibilidades para melhor situar os personagens. Cassie está desesperada porque não tem dinheiro para pagar o aluguel e sustentar a injeção diária de insulina que garante a sua integridade física. Ela é arredia, maltratada pela vida, alguém que enxerga os infortúnios sentimentais da mãe como claros indícios de que o amor é uma balela inexistente. Já Luke está pressionado por uma antiga dívida e não tem muito a quem recorrer para se salvar. Portanto, temos dois personagens em encruzilhadas sérias que encontram abrigo insuspeito um no outro.

Um dos aspectos positivos de Continência ao Amor é que os problemas dos personagens principais são reais, comuns e persistem para além do surgimento do vínculo atrapalhado por formas diametralmente opostas de encarar o mundo. No entanto, o casamento de fachada surge como resposta improvável para os contratempos imediatos de ambos e, dali em diante, o longa segue um caminho mais ou menos conhecido. O garoto e a garota descobrem gradativamente que a convivência abrandou as animosidades e eles podem até mesmo estar apaixonados. Mas, a realizadora resiste à tentação de partir logo para a conciliação, seguidamente oferecendo novos percalços antes de um bem previsível “felizes para sempre” – com direito a clipe de apaixonados correndo na praia, vestidos com roupas brancas, na companhia de um cão tão bonito quanto eles. Então, há qualidades na forma como é contada essa história para lá de batida, o que torna a sessão prazerosa e até emocionante em momentos específicos. Porém, para equilibrar os discursos político, romântico e familiar, o filme acaba sacrificando algumas coerências e lançando mão de soluções fáceis (e apressadas) para problemas difíceis. É preciso suspender bastante a descrença para “comprar” o sucesso meteórico da banda de Cassie depois que ela resolve “parar de se expressar com as palavras dos outros e dar vazão aos próprios sentimentos”. É o bom e velho “basta acreditar”. A campanha militar no Iraque é igualmente um pretexto.

Continência ao Amor é uma comédia romântica mediana que tenta traçar caminhos interessantes para amenizar a sensação insistente de lugar-comum. Por um lado, tem personagens carismáticos, contexto interessante de convivência entre perspectivas opostas e críticas breves – como ao Estado negligente (que merece ser engambelado) e pouco atencioso com os imigrantes que ajudaram a construir a grandeza dos Estados Unidos. Contudo, voltando ao aspecto ressaltado no primeiro parágrafo deste texto, é fundamental analisar de que modo o amor sobressai depois de tantas barreiras. E a resposta é: com Cassie baixando a guarda, abrandando a sua ira e se tornando cordata diante do conservadorismo de Luke. Sim, pois ele muda pouco ao longo da trama, quando muito baixando certas barreiras afetivas para abrir espaço ao entendimento de que o amor o atingiu em cheio. Já Cassie vai se tornando mais moderada à medida que o enredo avança em direção do amor. Capaz de constranger misóginos e racistas no começo, ela canta aos soldados a quem homenageia antes do grande show. Esse ato nobre de ceder ao bom senso, ou seja, de compreender que há incontáveis matizes entre o branco e o preto, é absolutamente louvável. Mas, então por que apenas ela modera o seu modo de pensar em agir, enquanto a ele cabe somente ser menos reativo, sem dar sinais de ceder terreno? No fim das contas, o filme defende o amor como algo que floresce apenas no jardim dos adequados.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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