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Sinopse

Continente, filme de Davi Pretto, conta a história de Amanda, que decide voltar para casa, acompanhada do namorado, o francês Martin, depois de 15 anos morando no exterior. Eles chegam à grande fazenda de sua família, localizada em uma vila isolada nas planícies infinitas do sul do Brasil. Lá, ela encontra o pai em coma e uma tensão crescente entre os trabalhadores. A única médica do vilarejo local é Helô, uma jovem que se resigna a cuidar da população local. A morte iminente do dono da fazenda colocará Amanda, Martin e Helô no centro de um perturbador acordo entre o povoado e a fazenda.

Crítica

Em seu mais novo filme, o cineasta Davi Pretto muda completamente a chave da abordagem, porém permanece embrenhado na cena campestre. No seu longa-metragem anterior, o ótimo Rifle (2016), ele fez uma meditação sobre as violências que empurram o homem da terra para fora do campo. Nele, a paisagem em transformação era esvaziada pelo avanço de latifúndios e monoculturas. Tratava-se de uma produção com raízes regionais, profundamente associada ao Rio Grande do Sul, inclusive pela forma como representava essa debandada que reconfigura de maneira agressiva a identidade do gaúcho campesino. Em Continente ele continua observando as selvagerias distantes das metrópoles num cenário camponês em que a lei parece fazer vista grossa e a ordem é uma lógica determinada por quem tem mais poder. No entanto, o registro é diferente, pois Davi nos propõe uma história de terror em que a crítica social está embutida nos acontecimentos, mas também no brutalismo sanguinolento que gerencia as relações humanas. A protagonista é Amanda (Olívia Torres), a principal herdeira de uma fazenda que retorna à sua terra de origem por conta da fragilidade da saúde de seu pai. Regressa da Europa na companhia do namorado francês, ela se depara com uma realidade em que o mau espreita desde os primeiros metros – vide os olhares desconfiados e o comportamento estranho dos funcionários.

Amanda é a sucessora do “rei”, aquela convocada a sentir rapidamente a pressão pela iminente necessidade de atender uma sina e ocupar o lugar do “imperador” prestes a morrer. Mas, Davi Pretto não faz de sua incursão pelo horror uma profunda jornada de personagem, a isso preferindo transformar a protagonista numa espécie de núcleo. O primeiro ponto positivo do filme é a bem-vinda negação de clichês que poderiam facilmente ser utilizados. Amanda é a típica personagem que retorna à terra natal evidentemente mudada pela vivência em outro lugar. Mas o conflito entre passado e presente nunca assume um caráter individual. O cineasta prefere observar o mundo em imediato colapso ao redor dela, se focando nas conversas cheias de tensão entre funcionários ora apreensivos, ora descontentes. Na trama de Continente está implícita uma série de elementos, como a perpetuação do coronelismo, além da diferença entre a servidão de uns e a indignação de outros. Os funcionários da fazenda permanecem em vigília, reivindicando um acerto que pode ser lido de maneira literal: todos estão com medo de ficar sem receber o que lhes é devido com a possível morte do patrão. No entanto, aos poucos o cineasta nos deixa perceber que o horror não é um espelho reflexivo, mas um terreno cada vez mais palpável onde a trama se assenta. Então, o vampirismo deixa de ser a remota possibilidade.

O segundo ponto positivo de Continente, sobretudo no que diz respeito à fuga dos lugares-comuns sugeridos, é o personagem Martin (Corentin Fila). É comum no cinema a figura forasteira utilizada como muleta para justificar explicações e diálogos expositivos. Sendo assim, é de se esperar que o namorado de Amanda, a única pessoa completamente alheia àquele universo, seja uma desculpa para o filme insistir em contextos e elucidações. Felizmente não é isso o que acontece. O estrangeiro aqui desempenha um papel bem menos utilitário – ainda que não chegue a ter qualquer importância fundamental para o que acontece. Davi Pretto às vezes parece hesitante demais entre confirmar as expectativas da existência de algo factualmente horripilante nas redondezas ou se valer de noções subentendidas do horror para construir um discurso sobre hereditariedade, dinâmicas exploratórias, opressores e oprimidos. Pensando estritamente na elaboração do suspense, o cineasta prefere manter o mistério, ou seja, trabalhar a partir de interrogações que podem ou não ser confirmadas, do que dar informações ao espectador que os personagens não têm. Talvez isso seja uma estratégia para tirar o foco estritamente do terror, a fim de trata-lo como uma enorme surpresa. Todavia, com o passar do tempo, ele não renova a curiosidade da plateia e, partir de certo instante, tampouco atualiza os termos da crítica social.

Continente é um filme que esconde habilmente alguns de seus trunfos principais, os revelando aos poucos. Podemos pegar como exemplo de algo parecido o que a cineasta francesa Claire Denis fez em Desejo e Obsessão (2001), no qual o aspecto fantástico é também sugerido a conta gotas até ser escancarado. No entanto, Davi Pretto não investe em alguns pontos que a sua colega europeia desenvolve com maestria, sendo o principal deles o desejo sexual. Denis associa a sede de sangue a um impulso erótico e, por conseguinte, atrela vida e morte, tornando o seu panorama de relações humanas mais complexos e interessantes. Curiosamente, Davi demora a conectar a sua crítica social aos anseios carnais frequentemente associados aos vampiros. Como que protegendo a dúvida, custe o que custar, o cineasta permite ao desejo vir à tona somente depois de confirmar a natureza da sede de sangue onipresente nas trocas entre patrão e empregados. Sendo assim, Davi utiliza o sexo muito mais como uma manifestação da voracidade das criaturas (algo antes adormecido/contido) do que necessariamente como item motivador desses seres misteriosos que representam em chave fantástica a lógica trabalhista formada de exploradores e explorados. Falta um pouco de intensidade nesse bom drama em que o horror vai se infiltrando na história de modo rigoroso, talvez por isso sendo um pouco contido demais.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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