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Crítica


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12 votos 9.2

Onde Assistir

Sinopse

Eleições presidenciais. Notícias falsas. Prazeres e dores pelos bairros da cidade. Brasil, século XXI.

Crítica

“O mundo está ao contrário e ninguém reparou”. O famoso trecho de Relicário, canção eternizada por Cássia Eller, poderia muito bem embalar parte deste curta-metragem de Leonardo Martinelli, mas talvez a melodia o suavizasse, lhe tirando a devida intensidade. Da forma como chega à tela, propositalmente cru, tal um projétil que se estilhaça em direção ao alvo e, assim, causa mais danos, Copacabana Madureira cumpre a função de deflagrar o estrago enorme proporcionado pelas fake news, algo infeliz e absolutamente contemporâneo. Em meio a colagens e justaposições, o realizador encena a famigerada “mamadeira de piroca” sendo apresentada a uma atriz, por exemplo. Ela faz às vezes de “cidadã de bem”, a julgar pelo horror ao receber a informação estapafúrdia via celular e, prontamente, nela acreditar. É fácil reconhecer o discurso absurdo dos anacrônicos, sobretudo os que adoram tachar o que lhes opõe de levante comunista. O filme toma uma posição e a defende.

O manancial de mentiras que beneficiou a vitória do então presidenciável Jair Bolsonaro passa, igualmente, pelo embuste deslavado de um suposto plano ardiloso arquitetado conjuntamente entre o Partido dos Trabalhadores e a Rede Globo de Televisão para colocar o rosto de Pablo Vittar nas notas da nossa moeda (?). A forma como Martinelli entrelaça os vários fragmentos confere ao todo um caráter ora engraçado, ora inquietante. A tensão serve para sublinhar a nocividade das falácias, dos discursos atrelados a uma vontade de render a maioria aos desmandos da minoria dominante. Bolsonaro aparece algumas vezes destilando seus impropérios contumazes, como na antiga entrevista em que descarta mudar as coisas por meio do voto e defende a morte de pelo menos 30 mil pessoas, inclusive de civis inocentes. Claramente há o repúdio da sandice, com o conjunto associando umbilicalmente essa política truculenta às torpes campanhas virtuais.

Copacabana Madureira vai construindo um discurso indignado, inclusive em certo momento, ainda que brevemente, voltando-se na direção de determinada oposição esquerdista que acredita piamente na efetividade de uma resistência somente por meio de meras hashtags. Há dramatizações pontuais de gente recebendo lorotas no celular, no que pode ser compreendido como reconstituição de um crime eleitoral que passou relativamente batido por nossas autoridades dispostas a fazer vista grossa. Num todo tão incisivo e corajoso, até mesmo o arroubo cômico vem carregado de iconoclastia. Difícil não cair na risada com a montagem das imagens de Jesus Cristo se “balançando” ao som de K.O, um dos maiores sucessos de Pablo Vittar. Leonardo Martinelli encadeia os ícones justamente para provocar uma discussão acerca da batalha semiótica travada com o intuito de definir os rumos do país. Vide a criatividade no uso dos emojis para comentar as asneiras.

Leonardo Martinelli faz um curta-metragem juntando fragmentos de uma sociedade adoentada por mentiras. O Hino à Bandeira adquirindo timbres terríficos; o lábaro que ostentas estrelado de cabeça para baixo; as “mamadeiras de piroca” jorrando um líquido esbranquiçado e opalino, assimilado de acordo com a malícia do espectador; a camiseta da rede pública carioca manchada de sangue, imagem que aponta ao genocídio da população negra, travestido de zelo. No fim das contas, o filme fala, também, de uma disputa ferrenha e atualíssima de signos diversos. Ele aborda as leituras que vão sendo construídas, ressignificadas e distorcidas ao bel prazer dos emissores/receptores de mensagens, nem sempre preocupados com o bem-estar geral. Copacabana Madureira parece um repositório de caos, mas é uma bem-aventurada e lisérgica incursão por nossa tragédia social, coleção de elementos que, uma vez entrelaçados e/ou chocados, nos colocam desnudos.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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